02/10/2010 12h00 - Atualizado em 02/10/2010 12h00
Crianças são chamadas de “bacha posh”: ‘vestida como um menino’. Prática permaneceu basicamente oculta a forasteiros.
Do New York Times
Aos seis anos, Mehran Rafaat é como muitas meninas de sua idade. Ela gosta de ser o centro das atenções. Assim como suas três irmãs mais velhas, ela está ávida por conhecer o mundo fora do apartamento de sua família, em seu bairro de classe-média em Cabul. Mas quando sua mãe, Azita Rafaat, membro do parlamento, veste as crianças para a escola pela manhã, há uma importante diferença. As irmãs de Mehran colocam vestidos pretos e véus na cabeça, amarrados firmemente sobre seus rabos-de-cavalo. Para Mehran, são calças verdes, uma camisa branca e uma gravata, seguidos de uma ajeitada de sua mãe em seus curtos cabelos negros. Depois disso, sua filha sai de casa – como um garoto afegão.
Não existem estatísticas sobre quantas meninas afegãs se disfarçam de meninos. Mas quando questionados, afegãos de diversas gerações sempre têm uma história sobre uma amiga, parente, vizinha ou colega de trabalho que cresceu vestida como menino. Para os que sabem, essas crianças não são chamadas nem de “filha” e nem de “filho”, mas de “bacha posh”, que significa literalmente “vestida como um menino” na língua dari.
Com dúzias de entrevistas conduzidas ao longo de diversos meses, onde muitas pessoas preferiram permanecer anônimas ou usar somente seus primeiros nomes – por medo de expor suas famílias –, foi possível investigar uma prática que permaneceu basicamente oculta a forasteiros. Ainda assim, ela atravessa classe social, nível de educação, etnia e geografia, e perdurou até mesmo durante as muitas guerras e governos do Afeganistão.
Razões econômicas
As famílias afegãs possuem muitas razões para disfarçar suas filhas de meninos, incluindo necessidade econômica, pressão social para ter filhos e, em alguns casos, uma superstição de que fazer isso poderia levar ao nascimento de um menino real. Sem um filho homem, os pais decidem criar um, geralmente cortando os cabelos de uma filha e vestindo-a em roupas afegãs tipicamente masculinas. Não existe uma proibição legal ou religiosa específica contra a prática. Na maioria dos casos, o retorno à feminilidade ocorre quando a criança entra na puberdade. Quase sempre são os pais que tomam essa decisão.
Numa terra onde os filhos são mais valorizados, já que na cultura tribal apenas eles podem herdar a riqueza do pai e dar continuidade ao nome, famílias sem garotos são objeto de pena e desdém. Mesmo um filho inventado eleva a posição da família, ao menos por alguns anos. Uma bacha posh também pode mais facilmente obter educação, trabalhar fora de casa e até mesmo acompanhar suas irmãs em público, permitindo liberdades inexistentes para meninas numa sociedade que segrega rigidamente homens e mulheres.
Mas para algumas delas, a mudança pode ser tão desnorteante quanto libertadora, lançando a mulher num limbo entre os sexos.
“Sei que é muito difícil para você acreditar que uma mãe faça isso à sua filha mais nova”, disse Rafaat num inglês por vezes imperfeito, durante uma das muitas entrevistas ao longo de várias semanas. “Mas quero lhe dizer, algumas coisas que acontecem no Afeganistão são realmente inimagináveis para vocês do ocidente”.
Frustração e decepção
A partir daquele fatídico dia em que ela se tornou mãe pela primeira vez – 7 de fevereiro de 1999 –, Rafaat sabia que havia fracassado, segundo ela, mas estava exausta demais para falar, tremendo sobre o chão frio da pequena casa de sua família, na província de Badghis.
Ela havia acabado de parir – ao mesmo tempo – as irmãs mais velhas de Mehran, Benafsha e Beheshta. A primeira gêmea nasceu após quase 72 horas de trabalho de parto, prematura em um mês. A menina pesava apenas 1,2 quilos e inicialmente não respirava. Sua irmã veio 10 minutos depois. Ela também estaca inconsciente.
Quando sua sogra começou a chorar, Rafaat sabia que não era por medo de que suas netas não sobrevivessem. A velha mulher estava decepcionada.
“Por que”, chorava ela, segundo Rafaat, “estamos recebendo mais mulheres na família?”
Submissão
Rafaat havia crescido em Cabul, onde era uma brilhante aluna, falando seis idiomas e nutrindo altos sonhos de se tornar uma médica. Porém, quando seu pai a obrigou a ser a segunda esposa de seu primo em primeiro grau, ela teve de se contentar em ser a esposa de um agricultor analfabeto, numa casa rural sem água corrente ou eletricidade, onde quem mandava era a sogra enviuvada – e onde ela deveria ajudar a cuidar de vacas, ovelhas e galinhas. Ela não se saiu muito bem.
Os conflitos com sua sogra se iniciaram imediatamente, à medida que a jovem Rafaat insistia numa higiene melhor e em ter mais contato com os homens da casa. Ela também pediu que sua sogra parasse de bater na primeira esposa de seu marido com a bengala. Quando Rafaat finalmente quebrou a bengala em protesto, a mulher mais velha exigiu que seu filho, Ezatullah, controlasse sua nova esposa.
E ele começou a fazer isso, com uma vara de madeira ou um fio de metal.
“No corpo, no rosto”, lembrou. “Eu tentei fazer com ele parasse. Eu pedia que ele parasse. Algumas vezes não conseguia pedir”.
Família
Logo, ela ficou grávida. A família a tratou um pouco melhor conforme ela crescia.
“Desta vez eles estavam esperando por um filho homem”, explicou ela.
A primeira esposa de Ezatullah Rafaat havia tido duas filhas, uma das quais morrera ainda bebê, e não podia mais engravidar. Azita Rafaat pariu duas meninas, uma decepção em dobro.
Ela enfrentou constantes pressões para tentar novamente, e assim o fez, com mais duas gravidezes, e quando teve mais duas meninas – Mehrangis, hoje com 9 anos, e finalmente Mehran, a menina de seis anos.
Questionada se ela alguma vez havia pensado em deixar seu marido, ela reagiu com completa surpresa.
“Eu pensava em morrer”, disse ela. “Mas nunca pensei no divórcio. Se eu tivesse me separado, teria perdido minhas filhas, e elas não teriam nenhum direito. Eu não sou das que desistem”.
Direitos das mulheres
Hoje, ela está num cargo de poder, pelo menos no papel. Ela é uma das 68 mulheres no parlamento de 249 membros do Afeganistão, representando a província de Badghis. Seu marido está desempregado e passa a maior parte de seu tempo em casa.
Persuadindo-o a se afastar de sua sogra e se oferecendo para contribuir nos rendimentos da família, ela estabeleceu a base para sua vida política. Três anos depois de casada, depois da queda do regime talibã em 2002, ela começou a trabalhar como voluntária de saúde para diversas organizações não-governamentais. Hoje ela ganha US$2 mil por mês como membro do parlamento.
Como política, ela trabalha para aprimorar os direitos das mulheres e o estado de direito. Ela concorreu recentemente à reeleição. Mas ela só podia concorrer com a permissão explícita de seu marido, e pela segunda vez consecutiva, ele não foi persuadido facilmente.
Ele queria tentar novamente ter um filho homem. Seria difícil conciliar a gravidez e um novo bebê com seu trabalho, disse ela – e ela sabia que poderia simplesmente ter outra filha.
Mas a pressão para ter um menino se estendeu além de seu marido. Esse era o único assunto que seus eleitores conseguiam abordar quando vinham a sua casa, disse ela.
“Quando você não tem um filho homem no Afeganistão”, explicou ela, “é como algo faltando em sua vida. Como se você perdesse o motivo mais importante de sua vida. Todos se sentem tristes por você”.
Disfarce
Numa tentativa de preservar seu emprego e acalmar seu marido, além de evitar a ameaça de ele conseguir uma terceira esposa, ela propôs a ele que eles fizessem sua filha mais nova se parecer com um menino.
Eles conversaram com a filha juntos, disse ela, e lhe fizeram uma atraente proposta: “Você quer se parecer com um menino e se vestir como menino, e fazer as coisas mais divertidas como os meninos fazem, como andar de bicicleta, jogar futebol e críquete? E você gostaria de ser como seu pai?”
Mehran não hesitou em responder que sim.
Naquela tarde, seu pai a levou ao barbeiro, onde seu cabelo foi aparado bem curto. Eles seguiram até o mercado, onde ela ganhou roupas novas. Sua primeira vestimenta era “algo como uma roupa de caubói”, disse Rafaat, querendo dizer um par de calças jeans e uma camisa vermelha de algodão com uma estampa nas costas dizendo “superstar”.
Ela ganhou até mesmo um novo nome – originalmente chamada Manoush, seu nome foi ajustado para um que soasse mais masculino: Mehran.
A volta às aulas de Mehran – usando calças e sem o rabo-de-cavalo – transcorreu sem grandes reações de seus colegas de escola. Ela ainda cochila durante as tardes com as meninas, e troca de roupa numa sala diferente da dos meninos. Alguns de seus colegas de sala a chamam de Manoush, enquanto outros usam Mehran. Mas ela sempre se apresenta aos recém-chegados como menino.
Fonte: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2010/10/contra-preconceito-familias-afegas-criam-meninas-como-meninos.html
Crianças são chamadas de “bacha posh”: ‘vestida como um menino’. Prática permaneceu basicamente oculta a forasteiros.
Do New York Times
Aos seis anos, Mehran Rafaat é como muitas meninas de sua idade. Ela gosta de ser o centro das atenções. Assim como suas três irmãs mais velhas, ela está ávida por conhecer o mundo fora do apartamento de sua família, em seu bairro de classe-média em Cabul. Mas quando sua mãe, Azita Rafaat, membro do parlamento, veste as crianças para a escola pela manhã, há uma importante diferença. As irmãs de Mehran colocam vestidos pretos e véus na cabeça, amarrados firmemente sobre seus rabos-de-cavalo. Para Mehran, são calças verdes, uma camisa branca e uma gravata, seguidos de uma ajeitada de sua mãe em seus curtos cabelos negros. Depois disso, sua filha sai de casa – como um garoto afegão.
Não existem estatísticas sobre quantas meninas afegãs se disfarçam de meninos. Mas quando questionados, afegãos de diversas gerações sempre têm uma história sobre uma amiga, parente, vizinha ou colega de trabalho que cresceu vestida como menino. Para os que sabem, essas crianças não são chamadas nem de “filha” e nem de “filho”, mas de “bacha posh”, que significa literalmente “vestida como um menino” na língua dari.
Com dúzias de entrevistas conduzidas ao longo de diversos meses, onde muitas pessoas preferiram permanecer anônimas ou usar somente seus primeiros nomes – por medo de expor suas famílias –, foi possível investigar uma prática que permaneceu basicamente oculta a forasteiros. Ainda assim, ela atravessa classe social, nível de educação, etnia e geografia, e perdurou até mesmo durante as muitas guerras e governos do Afeganistão.
Razões econômicas
As famílias afegãs possuem muitas razões para disfarçar suas filhas de meninos, incluindo necessidade econômica, pressão social para ter filhos e, em alguns casos, uma superstição de que fazer isso poderia levar ao nascimento de um menino real. Sem um filho homem, os pais decidem criar um, geralmente cortando os cabelos de uma filha e vestindo-a em roupas afegãs tipicamente masculinas. Não existe uma proibição legal ou religiosa específica contra a prática. Na maioria dos casos, o retorno à feminilidade ocorre quando a criança entra na puberdade. Quase sempre são os pais que tomam essa decisão.
Numa terra onde os filhos são mais valorizados, já que na cultura tribal apenas eles podem herdar a riqueza do pai e dar continuidade ao nome, famílias sem garotos são objeto de pena e desdém. Mesmo um filho inventado eleva a posição da família, ao menos por alguns anos. Uma bacha posh também pode mais facilmente obter educação, trabalhar fora de casa e até mesmo acompanhar suas irmãs em público, permitindo liberdades inexistentes para meninas numa sociedade que segrega rigidamente homens e mulheres.
Mas para algumas delas, a mudança pode ser tão desnorteante quanto libertadora, lançando a mulher num limbo entre os sexos.
“Sei que é muito difícil para você acreditar que uma mãe faça isso à sua filha mais nova”, disse Rafaat num inglês por vezes imperfeito, durante uma das muitas entrevistas ao longo de várias semanas. “Mas quero lhe dizer, algumas coisas que acontecem no Afeganistão são realmente inimagináveis para vocês do ocidente”.
Frustração e decepção
A partir daquele fatídico dia em que ela se tornou mãe pela primeira vez – 7 de fevereiro de 1999 –, Rafaat sabia que havia fracassado, segundo ela, mas estava exausta demais para falar, tremendo sobre o chão frio da pequena casa de sua família, na província de Badghis.
Ela havia acabado de parir – ao mesmo tempo – as irmãs mais velhas de Mehran, Benafsha e Beheshta. A primeira gêmea nasceu após quase 72 horas de trabalho de parto, prematura em um mês. A menina pesava apenas 1,2 quilos e inicialmente não respirava. Sua irmã veio 10 minutos depois. Ela também estaca inconsciente.
Quando sua sogra começou a chorar, Rafaat sabia que não era por medo de que suas netas não sobrevivessem. A velha mulher estava decepcionada.
“Por que”, chorava ela, segundo Rafaat, “estamos recebendo mais mulheres na família?”
Submissão
Rafaat havia crescido em Cabul, onde era uma brilhante aluna, falando seis idiomas e nutrindo altos sonhos de se tornar uma médica. Porém, quando seu pai a obrigou a ser a segunda esposa de seu primo em primeiro grau, ela teve de se contentar em ser a esposa de um agricultor analfabeto, numa casa rural sem água corrente ou eletricidade, onde quem mandava era a sogra enviuvada – e onde ela deveria ajudar a cuidar de vacas, ovelhas e galinhas. Ela não se saiu muito bem.
Os conflitos com sua sogra se iniciaram imediatamente, à medida que a jovem Rafaat insistia numa higiene melhor e em ter mais contato com os homens da casa. Ela também pediu que sua sogra parasse de bater na primeira esposa de seu marido com a bengala. Quando Rafaat finalmente quebrou a bengala em protesto, a mulher mais velha exigiu que seu filho, Ezatullah, controlasse sua nova esposa.
E ele começou a fazer isso, com uma vara de madeira ou um fio de metal.
“No corpo, no rosto”, lembrou. “Eu tentei fazer com ele parasse. Eu pedia que ele parasse. Algumas vezes não conseguia pedir”.
Família
Logo, ela ficou grávida. A família a tratou um pouco melhor conforme ela crescia.
“Desta vez eles estavam esperando por um filho homem”, explicou ela.
A primeira esposa de Ezatullah Rafaat havia tido duas filhas, uma das quais morrera ainda bebê, e não podia mais engravidar. Azita Rafaat pariu duas meninas, uma decepção em dobro.
Ela enfrentou constantes pressões para tentar novamente, e assim o fez, com mais duas gravidezes, e quando teve mais duas meninas – Mehrangis, hoje com 9 anos, e finalmente Mehran, a menina de seis anos.
Questionada se ela alguma vez havia pensado em deixar seu marido, ela reagiu com completa surpresa.
“Eu pensava em morrer”, disse ela. “Mas nunca pensei no divórcio. Se eu tivesse me separado, teria perdido minhas filhas, e elas não teriam nenhum direito. Eu não sou das que desistem”.
Direitos das mulheres
Hoje, ela está num cargo de poder, pelo menos no papel. Ela é uma das 68 mulheres no parlamento de 249 membros do Afeganistão, representando a província de Badghis. Seu marido está desempregado e passa a maior parte de seu tempo em casa.
Persuadindo-o a se afastar de sua sogra e se oferecendo para contribuir nos rendimentos da família, ela estabeleceu a base para sua vida política. Três anos depois de casada, depois da queda do regime talibã em 2002, ela começou a trabalhar como voluntária de saúde para diversas organizações não-governamentais. Hoje ela ganha US$2 mil por mês como membro do parlamento.
Como política, ela trabalha para aprimorar os direitos das mulheres e o estado de direito. Ela concorreu recentemente à reeleição. Mas ela só podia concorrer com a permissão explícita de seu marido, e pela segunda vez consecutiva, ele não foi persuadido facilmente.
Ele queria tentar novamente ter um filho homem. Seria difícil conciliar a gravidez e um novo bebê com seu trabalho, disse ela – e ela sabia que poderia simplesmente ter outra filha.
Mas a pressão para ter um menino se estendeu além de seu marido. Esse era o único assunto que seus eleitores conseguiam abordar quando vinham a sua casa, disse ela.
“Quando você não tem um filho homem no Afeganistão”, explicou ela, “é como algo faltando em sua vida. Como se você perdesse o motivo mais importante de sua vida. Todos se sentem tristes por você”.
Disfarce
Numa tentativa de preservar seu emprego e acalmar seu marido, além de evitar a ameaça de ele conseguir uma terceira esposa, ela propôs a ele que eles fizessem sua filha mais nova se parecer com um menino.
Eles conversaram com a filha juntos, disse ela, e lhe fizeram uma atraente proposta: “Você quer se parecer com um menino e se vestir como menino, e fazer as coisas mais divertidas como os meninos fazem, como andar de bicicleta, jogar futebol e críquete? E você gostaria de ser como seu pai?”
Mehran não hesitou em responder que sim.
Naquela tarde, seu pai a levou ao barbeiro, onde seu cabelo foi aparado bem curto. Eles seguiram até o mercado, onde ela ganhou roupas novas. Sua primeira vestimenta era “algo como uma roupa de caubói”, disse Rafaat, querendo dizer um par de calças jeans e uma camisa vermelha de algodão com uma estampa nas costas dizendo “superstar”.
Ela ganhou até mesmo um novo nome – originalmente chamada Manoush, seu nome foi ajustado para um que soasse mais masculino: Mehran.
A volta às aulas de Mehran – usando calças e sem o rabo-de-cavalo – transcorreu sem grandes reações de seus colegas de escola. Ela ainda cochila durante as tardes com as meninas, e troca de roupa numa sala diferente da dos meninos. Alguns de seus colegas de sala a chamam de Manoush, enquanto outros usam Mehran. Mas ela sempre se apresenta aos recém-chegados como menino.
Fonte: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2010/10/contra-preconceito-familias-afegas-criam-meninas-como-meninos.html
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