ISSN nº 1983-1811
Revista 07 - JUNHO de 2010 a SETEMBRO de 2010
Amália Formica (01)
1. Introdução
Uma nação que possui como objetivos fundamentais constituir uma sociedade livre e justa e sem quaisquer formas de discriminação, não pode deixar de tutelar o direito à redesignação sexual, pois as normas devem estar em consonância com os fatos e com os valores sociais. Desse modo, a transexualidade está dentre os fenômenos sociais que clamam por regulamentação e adequada atenção no plano jurídico.
De todas as variantes da sexualidade humana, a transexualidade é uma das mais incompreendidas. Esta se caracteriza pela experiência de nascer com cromossomos genitais e hormônios de um sexo, mas ter a convicção de pertencer ao gênero oposto. Assim, existem diferentes conceitos de transexualidade, porém, todos eles “têm como denominador comum a não compatibilização do sexo biológico com a identificação psicológica sexual no mesmo indivíduo”. (02)
Em síntese, os transexuais são pessoas que fenotipicamente pertencem a sexo definido, mas psicologicamente pertencem a outro e se comportam segundo este, rejeitando aquele. O transexual acredita insofismavelmente pertencer ao sexo contrário ao de sua anatomia. Vive, se comporta e age como o sexo oposto. Para ele, a operação de mudança de sexo é uma obstinação.
Para Matilde Sutter, “transexual é o indivíduo que rejeita seu sexo biológico, identificando-se com o sexo oposto, ao qual obsessivamente deseja permanecer. Rejeita qualquer tentativa de recondução ao seu sexo biológico, almejando a transformação da genitália, bem como a redesiganação do sexo”. (03)
Portanto, pode-se dizer que tal desarmonia é um problema genuinamente médico, que nada ter a ver com preferências sexuais. Enquanto homossexuais e travestis assumem os órgãos genitais que possuem, os transexuais repudiam suas genitálias, desejando veementemente a realização da cirurgia de adequação sexual. Já há muito tempo esse procedimento é realizado em hospitais. Porém, como qualquer outra cirurgia de complexidade média, a operação de adequação sexual possui um custo considerável para ser realizada, o que se constitui como óbice intransponível para a maioria dos transexuais.
2. Transexualidade e a Legislação.
2.1. Brasil
No Brasil, ainda não há legislação específica regulamentando a matéria. Contudo, a maioria dos juizes aplica a analogia e os princípios gerais do Direito (04) para solucionar os casos relativos aos transexuais. Assim, a ausência da legislação é preenchida pelos pronunciamentos jurisprudenciais.
A Constituição fornece o aparato necessário para a dicção jurisprudencial. No artigo 1º da Magna Carta estão arrolados os fundamentos da República Federativa do Brasil. Entre eles está a dignidade da pessoa humana. No artigo 3º nota-se que um dos objetivos da nossa nação é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Outrossim, o artigo 4º apregoa que nas relações internacionais, o Brasil rege-se pela prevalência dos direitos humanos. O artigo 5º, por sua vez, preceitua que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
No tocante às operações e a realização das mesmas com o financiamento do Sistema Único de Saúde pode-se dizer que a realização delas tem amparo constitucional no princípio do direito à saúde. O art. 6º da Constituição diz que: “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
Desse modo, o direito à saúde é direito fundamental, que pode ser defendido no plano individual e coletivo.
O artigo 6º é complementado pelo artigo 194 que aduz que a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Assim, compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base no objetivo da universalidade da cobertura e do atendimento. Assim, nenhum transexual pode se ver privado de assistência médica, muito menos de usufruir procedimento cirúrgico existente e custeado pelo Estado. Pois, como mesmo preceitua o artigo 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Todas as pessoas têm o direito de desempenhar o papel social que desejarem e com o qual se sentem confortáveis. A identificação sexual não pode ser imposta pela sociedade, ela deve ser decida individualmente pelo cidadão, que possui o pleno direito de desempenhar o papel de gênero com o qual se identifica física e psicologicamente. O individuo não pode se sentir obrigado a desempenhar papel diverso àquele com o qual se identifica socialmente, tal situação fere o princípio da dignidade humana.
Roger Raupp Rios assevera que “a norma de direito fundamental que consagra a proteção à dignidade humana requer a consideração do ser humano como um fim em si mesmo, ao invés de meio para a realização de fins e de valores que lhe são externos e impostos por terceiros; são inconstitucionais, portanto, visões de mundo heterônomas, que imponham aos transexuais limites e restrições indevidas, com repercussão no acesso a procedimentos médicos” (05).
No que diz respeito à mudança do nome e do gênero dos transexuais no registro civil, os magistrados vem utilizando a analogia com o artigo 58 da lei dos registros públicos cuja redação, alterada, em 1998, pela Lei nº 9.708, passou a ser a seguinte: “O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios”.
Cabe ressaltar que, desde 1995, está em trâmite perante a câmara dos deputados, o projeto de lei nº 70-B, de autoria do Deputado José Coimbra. Esse projeto tem como objetivo a legalização das operações de redesignação sexual e a posterior mudança no registro civil.
O deputado propõe a inclusão de novo parágrafo no artigo 129 do Código Penal, com o intuito de excluir do crime de lesão corporal a cirurgia de adequação sexual. Tal modificação visa a sedimentar o entendimento de que a conduta do médico, ao realizar a cirurgia de readequação sexual, não constitui crime de lesão corporal.
Além disso, o deputado também propõe alterações no artigo 58 da Lei nº 6.015 de 31/12/1973 (Lei dos Registros Públicos). Com a aprovação do projeto, o artigo passaria a possuir três parágrafos. O primeiro praticamente idêntico ao original. O segundo parágrafo prevê nova hipótese de alteração do nome relacionada à realização da cirurgia de transgenitalização. O terceiro parágrafo dispõe sobre a averbação de ser a pessoa transexual no registro de nascimento e documento de identidade.
A comissão de Constituição e Justiça e de Redação fez ressalva sobre o parágrafo terceiro do projeto. A comissão “insurgiu-se contra a determinação de averbação de ser a pessoa transexual, com fundamento no art. 5º, X, da CF, que protege, entre outras coisas, a privacidade da pessoa. Além de agredir a privacidade da pessoa, a menção ao fato de ser transexual a expõe ao ridículo”. (06)
A comissão, então, propôs nova redação ao citado parágrafo, que passou a ser a seguinte: “No caso do parágrafo anterior, deverá ser averbado no assento de nascimento o novo prenome, bem como o sexo, lavrando-se novo registro”. Foi apresentada, ainda, emenda aditiva que inclui mais um parágrafo ao artigo 58, além dos dois propostos pelo projeto. O quarto parágrafo tem a seguinte redação: “É vedada a expedição de certidão, salvo a pedido do interessado ou mediante determinação judicial”.
Contudo, há inúmeras questões que não foram abordadas no projeto. Apesar de seu valor por ter enfrentado a questão, o projeto possui diversas lacunas e ainda não poderá resolver completamente os problemas dos transexuais. “O referido projeto foi omisso quanto à necessidade ou não de autorização judicial para a realização da cirurgia. Não explicitou os destinatários da norma; não determinou o estado civil do transexual para que possa submeter-se à operação e deixou de estabelecer as garantias para que ele exerça os direitos decorrentes do seu novo estado sexual. Conseqüentemente, não delimitou o alcance jurídico desse reconhecimento e, por fim, também deixou de fixar os respectivos deveres”. (07)
Conforme assevera Elimar Szaniawsky: “embora reconheçamos que o Projeto de Lei 70-B, de 1995, de louvável iniciativa do deputado José Coimbra, se constitui em primeiro passo na solução dos problemas dos transexuais no Brasil, esse projeto de lei, lamentavelmente, não se constitui em uma lei que vá resolver, definitivamente, a situação difícil em que se encontram os transexuais em nosso país, a exemplo da Transsexuellengesetz alemã”. (08)
Continua...
Fonte: http://www.iedc.org.br/REID/?CONT=00000058
1. Introdução
Uma nação que possui como objetivos fundamentais constituir uma sociedade livre e justa e sem quaisquer formas de discriminação, não pode deixar de tutelar o direito à redesignação sexual, pois as normas devem estar em consonância com os fatos e com os valores sociais. Desse modo, a transexualidade está dentre os fenômenos sociais que clamam por regulamentação e adequada atenção no plano jurídico.
De todas as variantes da sexualidade humana, a transexualidade é uma das mais incompreendidas. Esta se caracteriza pela experiência de nascer com cromossomos genitais e hormônios de um sexo, mas ter a convicção de pertencer ao gênero oposto. Assim, existem diferentes conceitos de transexualidade, porém, todos eles “têm como denominador comum a não compatibilização do sexo biológico com a identificação psicológica sexual no mesmo indivíduo”. (02)
Em síntese, os transexuais são pessoas que fenotipicamente pertencem a sexo definido, mas psicologicamente pertencem a outro e se comportam segundo este, rejeitando aquele. O transexual acredita insofismavelmente pertencer ao sexo contrário ao de sua anatomia. Vive, se comporta e age como o sexo oposto. Para ele, a operação de mudança de sexo é uma obstinação.
Para Matilde Sutter, “transexual é o indivíduo que rejeita seu sexo biológico, identificando-se com o sexo oposto, ao qual obsessivamente deseja permanecer. Rejeita qualquer tentativa de recondução ao seu sexo biológico, almejando a transformação da genitália, bem como a redesiganação do sexo”. (03)
Portanto, pode-se dizer que tal desarmonia é um problema genuinamente médico, que nada ter a ver com preferências sexuais. Enquanto homossexuais e travestis assumem os órgãos genitais que possuem, os transexuais repudiam suas genitálias, desejando veementemente a realização da cirurgia de adequação sexual. Já há muito tempo esse procedimento é realizado em hospitais. Porém, como qualquer outra cirurgia de complexidade média, a operação de adequação sexual possui um custo considerável para ser realizada, o que se constitui como óbice intransponível para a maioria dos transexuais.
2. Transexualidade e a Legislação.
2.1. Brasil
No Brasil, ainda não há legislação específica regulamentando a matéria. Contudo, a maioria dos juizes aplica a analogia e os princípios gerais do Direito (04) para solucionar os casos relativos aos transexuais. Assim, a ausência da legislação é preenchida pelos pronunciamentos jurisprudenciais.
A Constituição fornece o aparato necessário para a dicção jurisprudencial. No artigo 1º da Magna Carta estão arrolados os fundamentos da República Federativa do Brasil. Entre eles está a dignidade da pessoa humana. No artigo 3º nota-se que um dos objetivos da nossa nação é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Outrossim, o artigo 4º apregoa que nas relações internacionais, o Brasil rege-se pela prevalência dos direitos humanos. O artigo 5º, por sua vez, preceitua que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
No tocante às operações e a realização das mesmas com o financiamento do Sistema Único de Saúde pode-se dizer que a realização delas tem amparo constitucional no princípio do direito à saúde. O art. 6º da Constituição diz que: “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
Desse modo, o direito à saúde é direito fundamental, que pode ser defendido no plano individual e coletivo.
O artigo 6º é complementado pelo artigo 194 que aduz que a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Assim, compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base no objetivo da universalidade da cobertura e do atendimento. Assim, nenhum transexual pode se ver privado de assistência médica, muito menos de usufruir procedimento cirúrgico existente e custeado pelo Estado. Pois, como mesmo preceitua o artigo 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Todas as pessoas têm o direito de desempenhar o papel social que desejarem e com o qual se sentem confortáveis. A identificação sexual não pode ser imposta pela sociedade, ela deve ser decida individualmente pelo cidadão, que possui o pleno direito de desempenhar o papel de gênero com o qual se identifica física e psicologicamente. O individuo não pode se sentir obrigado a desempenhar papel diverso àquele com o qual se identifica socialmente, tal situação fere o princípio da dignidade humana.
Roger Raupp Rios assevera que “a norma de direito fundamental que consagra a proteção à dignidade humana requer a consideração do ser humano como um fim em si mesmo, ao invés de meio para a realização de fins e de valores que lhe são externos e impostos por terceiros; são inconstitucionais, portanto, visões de mundo heterônomas, que imponham aos transexuais limites e restrições indevidas, com repercussão no acesso a procedimentos médicos” (05).
No que diz respeito à mudança do nome e do gênero dos transexuais no registro civil, os magistrados vem utilizando a analogia com o artigo 58 da lei dos registros públicos cuja redação, alterada, em 1998, pela Lei nº 9.708, passou a ser a seguinte: “O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios”.
Cabe ressaltar que, desde 1995, está em trâmite perante a câmara dos deputados, o projeto de lei nº 70-B, de autoria do Deputado José Coimbra. Esse projeto tem como objetivo a legalização das operações de redesignação sexual e a posterior mudança no registro civil.
O deputado propõe a inclusão de novo parágrafo no artigo 129 do Código Penal, com o intuito de excluir do crime de lesão corporal a cirurgia de adequação sexual. Tal modificação visa a sedimentar o entendimento de que a conduta do médico, ao realizar a cirurgia de readequação sexual, não constitui crime de lesão corporal.
Além disso, o deputado também propõe alterações no artigo 58 da Lei nº 6.015 de 31/12/1973 (Lei dos Registros Públicos). Com a aprovação do projeto, o artigo passaria a possuir três parágrafos. O primeiro praticamente idêntico ao original. O segundo parágrafo prevê nova hipótese de alteração do nome relacionada à realização da cirurgia de transgenitalização. O terceiro parágrafo dispõe sobre a averbação de ser a pessoa transexual no registro de nascimento e documento de identidade.
A comissão de Constituição e Justiça e de Redação fez ressalva sobre o parágrafo terceiro do projeto. A comissão “insurgiu-se contra a determinação de averbação de ser a pessoa transexual, com fundamento no art. 5º, X, da CF, que protege, entre outras coisas, a privacidade da pessoa. Além de agredir a privacidade da pessoa, a menção ao fato de ser transexual a expõe ao ridículo”. (06)
A comissão, então, propôs nova redação ao citado parágrafo, que passou a ser a seguinte: “No caso do parágrafo anterior, deverá ser averbado no assento de nascimento o novo prenome, bem como o sexo, lavrando-se novo registro”. Foi apresentada, ainda, emenda aditiva que inclui mais um parágrafo ao artigo 58, além dos dois propostos pelo projeto. O quarto parágrafo tem a seguinte redação: “É vedada a expedição de certidão, salvo a pedido do interessado ou mediante determinação judicial”.
Contudo, há inúmeras questões que não foram abordadas no projeto. Apesar de seu valor por ter enfrentado a questão, o projeto possui diversas lacunas e ainda não poderá resolver completamente os problemas dos transexuais. “O referido projeto foi omisso quanto à necessidade ou não de autorização judicial para a realização da cirurgia. Não explicitou os destinatários da norma; não determinou o estado civil do transexual para que possa submeter-se à operação e deixou de estabelecer as garantias para que ele exerça os direitos decorrentes do seu novo estado sexual. Conseqüentemente, não delimitou o alcance jurídico desse reconhecimento e, por fim, também deixou de fixar os respectivos deveres”. (07)
Conforme assevera Elimar Szaniawsky: “embora reconheçamos que o Projeto de Lei 70-B, de 1995, de louvável iniciativa do deputado José Coimbra, se constitui em primeiro passo na solução dos problemas dos transexuais no Brasil, esse projeto de lei, lamentavelmente, não se constitui em uma lei que vá resolver, definitivamente, a situação difícil em que se encontram os transexuais em nosso país, a exemplo da Transsexuellengesetz alemã”. (08)
Continua...
Fonte: http://www.iedc.org.br/REID/?CONT=00000058
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