segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Meu mundo em azul.


Adolescentes transexuais de menina para menino revelam sonhos e angústias para JUNIOR.


Por Neto Lucon.

Para a família, o universo cor-de-rosa estava traçado desde a maternidade. Mas no primeiros anos de vida, um universo azul-claro desbotou as bonecas e os vestidos. Natália S., em seu aniversário, não queria uma festa com decoração de princesa. O motivo? Ela garantia ser um menino. De cabelos curtos e roupas folgadas, a garota não foi levada a sério pelos pais - " era apenas uma menina que gostava de coisas de garotos" - até que a afirmação começou a ser visível nas atitudes cotidianas. Levada a um psicoterapeuta, os pais se viram diante de uma possível caso de transexualidade. Agora eles buscam a "cura". Detalhe: Natália está com oito anos.

Um a cada 100 mil.

Menos visíveis que as mulheres trans, os homens transexuais muitas vezes estão escondidos na caixinha nomeada "lésbica" e vivem um sofrimento sem nomes. No ano passado, o militante Chaz Bono, filho da cantora Cher, trouxe o assunto à tona. Ele assumiu a transexualidade publicamente, depois de passar quatro décadas definindo-se como lésbica. Em Campinas, interior de São Paulo, a história se repete. Até os 18 anos, o estudante Samy Samassa era visto como apenas uma mulher que gostava de mulheres. Após fugir de casa, voltar, ter crises e ir a uma psicóloga, escutou uma revelação iluminadora:"você é um homem transexual". "Nesse momento foi tirado um peso das minhas costas", recorda o jovem, que aos 19 anos obteve um laudo de transexualidade e começou a usar faixa para esconder os seios. Era o início de sua felicidade e o começo dos problemas familiares.

Há 20 anos trabalhando com pacientes transexuais, a psicóloga Angélica Soares, também especializada em violência contra crianças e adolescentes na USP, afirma que a reação dos pais nestes casos geralmente é a pior possível. " A família busca o especialista para convencer a criança ou o adolescente de que isso é errado, que ele mude de idéia. Realmente é difícil aceitar que a menina não é mesmo uma menina. Mas tentar mudar isso a todo custo é uma luta insana", frisa a psicóloga. Ela pondera ao informar que 5% das crianças com disforia de gênero são de fato transexuais, mas alerta que nem sempre é uma fase. " Pesquisas apontam que existe um homem transexual a cada 100 mil mulheres," argumenta.

Não ligava em ganhar Barbies. Eu as namorava.

De cabelo moicano e piercing no nariz, Samy, 19 anos, emposta a voz, anda de pernas abertas e chama a atenção das mulheres. Poucos desconfiam do seu passado e dos documentos femininos. Às vezes é visto como um adolescente gay, jamais como mulher. Segundo ele, o pensamento e o comportamento masculino são nítidos desde a fase escolar "Eu sempre estava na fila de garotos, não me sentia bem por entrar em banheiro feminino, e adorava ficar sem camiseta. A direção falava para eu me comportar como menina, mas eu agia normalmente", afirma. Nas brincadeiras, preferia as pipas e os carrinhos do irmão mais velho. Esperto e com uma imaginação fértil, ele não encarava as Barbies como rivais. Elas eram suas namoradas! Não era raro flagrá-lo beijando "suas esposas" pela casa. "Tenho essa consciência desde os quatro anos", garante ele, que prova com fotografias o desgosto pelo universo feminino. "Nesta foto, estou chorando porque minha mãe colocou um vestido. E eu gostava das roupas do meu pais, passar o perfume dele", aponta. Outro momento que destaca é quando fingia se barbear. "No banheiro, com 12 anos, eu beijava a Barbie e passava creme de barbear no rosto. Mesmo sem pêlo nenhum, eu me sentia bem fazendo isso. Era como se fosse me tornar um menino."

Batia nos meninos para me sentir homem.

"Minha infância foi traumática. Aos seis anos, eu sequer andava e raramente falava", afirma o guarda municipal e estudante de direito Régis Vascon. Com estrutura familiar de pilares frágeis, Régis conviveu na infância com um avô agressor, uma mãe de pouco diálogo, ensino tardio e muito medo. "Eu me sentia diferente, pois sabia que não era igual às meninas. Mas não conversava a respeito por medo de as pessoas pensarem que eu era louco", declara. Na escola, Régis virou motivo de chacota pela aparência e tornou-se agressivo. "No 1º colegial, adorava bater nos meninos que faziam piadas sobre mim. Parecia que, quando eles apanhavam, eu reafirmava que era homem."

Adolescência e hormônios.

Adolescência. Flertes. Namoros. Explosão de hormônios...FEMININOS! Algo desesperador para qualquer homem transexual que se vê diante de seios crescentes e questões extremamente femininas como a mesntruação. " Passei os 14, 15 anos sofrendo. Quando tive minha primeira menstruação fiquei um ano e meio sem contar para ninguém. Eu morria de vergonha", declara Samy.

"O principal tratamento familiar nos casos envolvendo transexualidade é o luto", declara a psicóloga Angélica. "O pai deve, sim, encarar a perda de uma filha. Mas por outro lado, vai ganhar um filho", argumenta. Ela não aconselha a incentivar na infância a mudança total de gênero, pois há a possibilidade de ser uma fase. " O que os pais podem oferecer são opções: colocar uma roupa de menina e uma roupa de menino, deixar que ela escolha. Também temos que ter em mente que existem mulheres masculinas e isso não faz delas transexuais."
Na luta.

Samy ainda peleja os dilemas familiares. " Com 16 anos, entrei em depressão e quis me matar. Já saí da escola, voltei e hoje como o pão que o diabo amassou", revela. Na escola, porém, ele consegui o direito de ir ao banheiro masculino. Atualmente trabalha como atendente da Faculdade Anhaguera e faz faculdade para ser assistente social. Lá, depois de algumas brigas, ele finalmente conseguiu se reconhecido como sempre sonhou: um homem "A maior alegria é ter o corpo acompanhando a mente. E, claro, ser reconhecido como tal", finaliza.

Fonte: LUCON, N. Meu mundo em azul. Junior, São Paulo, n.20, p.44-45, ago.2010.

Junior é uma revista de publicação mensal da Editora MixBrasil - http://www.revistajunior.com.br/ - http://www.mixbrasil.com.br/

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