sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A despatologização da transexualidade.



Muito tem se falado sobre a despatologização da transexualidade. Acabei por pensar nesse texto, tentando ser o mais isento possível; partir de avaliações, e não de qualificações de que algo seja ruim ou bom.

É fato que a palavra doença é carregada de estigmas. O agente doente é aquele que precisa ser cuidado, tratado, curado; quase um incapaz tamanha sua dependência naquele momento. Isso tem um peso ao indivíduo, e ao social.

Mas quando a doença, ou algo assim dito, deixa esse status de “malignidade” e se torna uma condição ou uma variante?

Algumas pessoas se sentem mais confortáveis dizendo-se doentes, onde todo o processo de readequação é a cura. Outros renegam o rótulo de doença é se dizem apenas indivíduos diferentes, afinal todos somos diferentes de alguma forma. Tudo depende do ponto de vista do observador.

Um invalida o outro?

Ao meu ver não, até porque pessoas não são máquinas e tem cada qual suas limitações, medos, defesas, complexos, e não podem ser avaliadas por parâmetros alheios as vivências individuais de cada um.

Mas então despatologizar resolve?

Talvez. Mas é claro que tal ação gera a necessidade de reformulação do conceito terapêutico atual, e indo além, de uma readequação jurídica, já que as decisões na sua maioria, se baseiam em laudos e provas diagnósticas para garantir a um indivíduo algo que é de todos por direito: a dignidade da pessoa humana.

Urgiria também o cuidado com a reforma interna daqueles que assim se dizem, doentes, e que buscam uma cura, afinal, como faço eu então sem a minha referência de segurança?

Tudo isso me remete sempre ao conceito de normalidade. O que é ser normal? O que é normalidade? O normal é o usual?

O normal é tudo aquilo que não foge ao que conheço, que não me provoca questionamentos nem remete a situações internas latentes, que não gera conflitos sociais, morais, éticos. Se não conheço, afasto, é errado, é anormal.

Partindo dessa premissa, o normal seria a regra, e toda exceção o patológico. Quando a exceção torna-se comum e alcança o status de normalidade, não mais gera qualquer tipo de conflitos, e é aceita e vista como usual.

A a - normalidade nega a diferença é a transforma em algo feio, doente, que carece de cura, que foge as regras.

Mas regra do quê? De quem?

As regras de uma convenção das leis, ou as regras inatas da natureza? Ou seriam as regras sociais sutilmente coercitivas, as quais, mesmo sendo todos diferentes em algum momento, não escapamos?

Fato é que dúvidas filosóficas à parte, para todo pleito, existem conseqüências hipotéticas. Meu sincero receio é que esse despatologizar gere por parte de uma camada da sociedade, e do poder público, um certo desleixo com relação a acompanhamento médico regular e adjacentes.

Sairíamos do status “maligno” pra o usual, e corremos o risco de sermos considerados como indivíduos que assim escolheram, então que arquem com as conseqüências sem usar dinheiro do governo, fundos de pesquisa entre outros.

“Mas eu não escolhi, nasci assim!”

O que nós leva a questão da causa da transexualidade. É biológica? É genética? É psicológica?

Pessoalmente, não descarto nenhuma possibilidade. Podem existir indivíduos com situações físicas de fato, outros com situações psicológicas e outros com concomitância de fatores. Não é possível generalizar um ser humano, por isso um não deveria ser preponderante ao outro, na hora de se objetivar um tratamento.

Vou além: na realidade, faz alguma diferença a causa? Ou o que importa é o que aquele indivíduo sente, que o leva a um desgaste físico e mental absurdos? O enfoque deveria ser o indivíduo e a procura de minorar o seu mal estar, de proporcionar uma melhor qualidade de vida ou uma disputa para provar que de fato temos direito de existir e receber tratamento?

Esqueci que o diferente nega a normalidade, e por isso é menos sucetível a direitos. Voltamos às regras, ao usual, ao “normal”.

Não acho que despatologizar seja algo inválido, apenas creio que é uma faca de dois gumes que pode gerar um resultado pouco interessante a princípio, mas nada que, em assim sendo, não possa ser trabalhado, pensado e organizado, e venha a ter seus frutos colhidos a médio e longo prazo.

Mas não creio que isso tire o preconceito que o ser transexual carrega, seja para ele mesmo ou para o leigo que não permite que o que difira de sua esfera interna exista no mundo.

É talvez a ponta do iceberg na busca de uma visão mais normativa, seja lá o que isso for, e menos assustadora da diferença. E por ser uma possibilidade, tem o seu lugar, o seu direito a ser tentada.

Notem que em nenhum momento estou me colocando contra nada nem ninguém, apenas traçando pontos, possibilidades, conseqüências hipotéticas.

Sou alguém sempre pelo humano, pelo objetivo maior, pelo bem estar do indivíduo, mas não posso me escusar de jogar um olhar crítico sobre o possível resultado de uma determinada situação.

No final do dia o que interessa é: sejamos quem somos, de qualquer forma, somos semelhantes, com diferenças sim que não deveriam ser qualificadas ou quantificadas, mas incorporadas na busca de uma vivência individual e social mais plena e evolutiva, com direito e deveres sim, mas livres dos cárceres do medo, do ódio e da intolerância.

Um comentário:

  1. Há alguns meses fui a um Terças Trans, coordenado por minha grande amiga Alê Saraiva. O assunto, justamente, era o mesmo. A Dra Bárbara Menêses, Psicóloga e Terapeuta Sexual, dirigiu uma dinâmica em grupo que debateu esta polêmica. Uns defendiam a Patologização da Transexualidade. Outros a combatiam.
    Fiquei no grupo que defendia (por sorteio...mas posso dizer que por sorte tb). Sou a favor da patologização.
    Num país onde quase nada se consegue por vias "nomais", ter uma "doença" gera motivo para a busca da cura. E qual é a cura para a transexualidade? A readequação do corpo à mente.
    Como convencer as pessoas de que se submeter a uma sirurgia de readequação não é "coisa de louco", ou de "sem-vergonha"?
    É claro que num futuro distante, utópico, a humanidade respeitará seus semelhantes, mesmo eles sendo tão "diferentes" do que é classificado como "normal". Até este dia chegar, prefiro ser enxergado por "doente" por poucos, pra conseguir o que eu quero.

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