sábado, 30 de janeiro de 2010

Porque bons exemplos não tem gênero II.

Justiça garante a transexual direito de retornar à reserva da Aeronáutica

Ela foi reformada, num processo que correu contra a sua vontade.

Agora, a Justiça lhe garante o direito de retornar à reserva. Aeronáutica deve recorrer.

Marcelo Abreu

Publicação: 29/01/2010

São 10 longos anos de luta. Tempo suficiente para causar uma brutal mudança de vida. Mas a batalha ainda não terminou. Primeiro, o isolamento na caserna. E um parecer, do Alto Comando, a que o Correio teve acesso, em 2000, com exclusividade: “Atrofia testicular por provável ação medicamentosa. Transexualismo”. E a decisão que a afastaria para sempre, depois de 22 anos de serviços prestados à corporação, com condecorações e medalhas: “Incapaz, definitivamente, para o serviço militar. Não é inválido. Não está incapacitado total ou permanentemente para qualquer trabalho. Pode prover os meios de subsistência. Pode exercer atividades civis”.

Depois, com coragem sem precedentes, o enfrentamento contra o parecer. À procura por ajuda, ela bateu à porta do Ministério Público. O promotor Diaulas Ribeiro, da Promotoria de Defesa dos Usuários de Saúde (Pró-Vida), ouviu a sua história. Aceitou a luta. Começaram as consultas com psiquiatras. Laudos. Novos relatórios. Em 2005, a mais importante transformação de sua vida: a cirurgia de mudança de sexo. Ela virou o que sempre sonhou

Em 2007, a primeira grande vitória. A juíza substituta Lília Simone Rodrigues da Costa Viera, da 1ª Vara de Família do Tribunal de Justiça do DF, numa sentença ousada, despachou: “O sexo é atributo da personalidade, sendo dela parte integrante. Negando-se o direito de alguém ter o sexo correspondente ao órgão que possui é sonegar o direito de ser feliz, de ter esperança, de acreditar na vida, de viver com dignidade”.

Extremamente corajosa, a juíza continuou: “Rechaçar o direito do requerente em ter o sexo alterado em seu registro civil é plasmar injustiça flagrante, pois o autor, conforme mencionado nos autos, sempre se sentiu mulher, se veste como mulher e, além disso, repito, já retirou a genitália masculina que possuía”. Desde aquele dia, estava reconhecido o direito de Maria Luiza da Silva — nome que escolheu antes mesmo da cirurgia — pertencer ao sexo feminino.

Mas ainda faltava a alteração no registro civil. Em 2007, a segunda vitória. O juiz substituto da Vara de Registros Públicos do DF, José Batista Gonçalves da Silva, acolheu a manifestação do Ministério Público e determinou a alteração do nome, como também a averbação à margem do assento de nascimento. Maria Luiza teve uma nova certidão.

Afastamento ilegal

A vitória mais recente foi publicada na quinta-feira, 21. É a que trata da volta aos quadros da Aeronáutica. Mesmo que na reserva, por questão da idade. A Justiça entendeu que o afastamento (leia-se reforma, aos 39 anos) da função de cabo foi ilegal. “Quando eles me reformaram, chorei muito. Durante 22 anos, servi exemplarmente às Forças Armadas. Durante 22 anos, nunca tive uma punição na minha ficha. Recebi condecorações e certificados pelos bons serviços prestados à corporação”, diz Maria Luiza. E emenda: “Todas as vezes que os médicos me perguntavam se eu queria ser reformada, eu dizia: ‘Quero continuar a minha carreira, servir à Aeronáutica. É o que sei fazer e faço com muito orgulho’. Nada adiantou. Reduziram meu salário à metade e fui reformada por um ato preconceituoso”.

Na sentença, assinada pelo juiz Hamilton de Sá Dantas, titular da 21ª Vara Federal, está escrito: “Pela análise de toda essa documentação, acostada nos autos, fica evidente que a demandante, apesar do diagnóstico de transexual, tem perfeito domínio de suas faculdades mentais e psíquicas, não possuindo, portanto, nenhuma incapacidade para a vida profissional”

No fim, Sá Dantas conclui: “Com isso, a transexualidade, apesar de uma doença de transtorno psicológico, não gera nenhuma incapacidade permanente apta a justificar uma reforma, mesmo que na seara militar. Trata-se, sim de uma doença passível de tratamento e cura e não uma doença incapacitante”.

No meio da manhã de ontem, o Correio voltou à casa de Maria Luiza, um apartamento humilde (funcional) de dois quartos no Cruzeiro Novo — onde ainda mora graças à força de uma liminar. De calça jeans, blusa decotada, tamancos pretos, unhas pintadas de vermelho, brincos e batom discreto, ela falou sobre a última decisão judicial.

Emocionada, com a voz baixa, disse: “Desde que comecei na minha transformação, quis continuar na profissão. Fui impedida e humilhada. Hoje, com essa decisão, senti a minha dignidade resgatada. Mostra à sociedade que o mundo precisa ser revisto. Não se pode discriminar por orientação sexual. Eu sempre fui digna de pertencer aos quadros da Aeronáutica”.

Silêncio

A última decisão da Justiça Federal tira Maria Luiza da reforma e a coloca na reserva, com soldo igual aos militares nunca reformados. A cabo, entretanto, não voltará à ativa, em função da idade. Ela completou 49 anos. O tempo de serviço, 30 anos adotados nas Forças Armadas, já transcorreu. “Me alistei com 18 anos. Toda minha vida me dediquei ao meu trabalho, que era de mecânica de avião. Fiz muitos cursos e, antes de ser reformada, eu já ensinava o que sabia. Entendo a questão da idade, mas ainda sou perfeitamente capaz para o trabalho”, reflete.

Para o advogado de Maria Luiza, Luís Maximiliano Telesca, de 35 anos e há sete à frente dos processos, a decisão favorável é uma inédita vitória. “É uma sentença histórica do judiciário. Ele reconheceu que um transexual está apto a exercer a vida militar”. Telesca informou, ainda, que, como cabe recurso à ação, a Aeronáutica, muito provavelmente, recorrerá a instâncias superiores.

Procurada pelo Correio, a Aeronáutica, por meio do Centro de Comunicação Social, disse que, até que seja transitado em julgado (já que cabe recurso), a instituição não se manifestará. Enquanto aguarda mais uma batalha, Maria Luiza, o primeiro caso de transexualismo nas Forças Armadas do país, continua fazendo palestras para o grupo de transexuais (homens e mulheres) atendido no Hospital Universitário de Brasília (HUB). Vai à missa todo domingo (é devota da Virgem Maria), pinta quadros e tira fotos com sua máquina analógica. Fotografas flores por onde passa. “Sempre gostei de fotos, desde adolescência”.

Folheando a sentença do juiz (mais uma), ela confessa: “Sempre quis um recomeço de vida, ser feliz. Nunca me senti homem. Passei a minha vida toda contrária ao meu sentimento. Esse documento é mais uma prova de que a luta não foi em vão. E pode ser a luta de muitas outras pessoas”.

Para saber mais

Sofrimento psíquico

Transexualidade é uma condição clínica em que se encontra um indivíduo biologicamente normal e que, segundo sua história pessoal e clínica e de acordo com o exame psiquiátrico, apresenta sexo psicológico incompatível com a natureza do sexo somático. Portanto, um indivíduo que se encontra nessa condição tem uma autoimagem invertida e, por isso se sente diferente (espécie/gênero) daquilo que fisicamente o representa (sexo/órgão). Pessoas nessa situação padecem de profundo sofrimento psíquico. No caso de Maria Luiza, que nasceu J.C., ela nunca aceitou a genitália masculina. Alguns pacientes acreditam que houve, de fato, na concepção, um erro na determinação do sexo anatômico. Muitos deles buscam a cirurgia para mudança de sexo. Em casos extremos, alguns se automutilam. Outros, desesperados, chegam ao extremo do suicídio.

A Organização Mundial de Saúde considera a transexualidade e o transgenerismo patologias mentais, chamadas Transtornos de Identidade de Gênero na classificação Internacional das Doenças (IC-10). O diagnóstico é feito por psiquiatras ou psicólogos, por meio de várias conversas com o paciente, para determinar corretamente os sentimentos dele. Depois, são emitidos laudos que atestam o transtorno.


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