quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Em busca do anonimato - Escola Superior do Ministério Público debate o direito dos transexuais à cidadania


O transexual não quer levantar bandeiras, sair em passeatas, viver exposto. Tudo que deseja é andar despercebido na multidão em um corpo compatível com a sua identidade de gênero. A cada sexta-feira, três novas pessoas procuram o ambulatório de transtorno de identidade, de gênero e orientação sexual do Hospital das Clínicas com o objetivo de realizar a cirurgia de mudança de sexo. Do total de interessados, entre 70% e 80% são diagnosticados como ‘trans’ e, portanto, podem se submeter à intervenção cirúrgica. Desde 1998, o HC já realizou 32 cirurgias em transexuais, que conquistaram o direito de utilizar o nome social em documentos oficiais. Em todo o mundo, um a cada 30 mil adultos masculinos e uma a cada 100 mil adultas femininas buscam a cirurgia de mudança de sexo.

Para debater o diagnóstico trans, a intervenção cirúrgica, a adaptação psicológica ao novo corpo e o avanço dos direitos dos transexuais, a Escola Superior do Ministério Público promoveu nesta quarta-feira, 27 de outubro, a palestra “Transexualidade e Direitos Humanos”. O evento contou com a exposição do médico Alexandre Saadeh, coordenador do ambulatório de transtorno de identidade, de gênero e orientação sexual do Hospital das Clínicas; e dos Promotores de Justiça Reynaldo Mapelli Júnior, coordenador do CAO Cível – área de Saúde Pública, e Deborah Kelly Affonso, assessora jurídica da Procuradoria-Geral de Justiça.

O debate sobre o tema – inédito na história do Ministério Público – foi enriquecido com a participação de mulheres que realizaram a cirurgia de mudança de sexo e que, hoje, assumem cargos de liderança na luta pelo reconhecimento de direitos e cidadania ‘trans’ - a psicóloga Clara Cavalcante, do Ambulatório de HIV/AIDS do Centro de Referência e Treinamento em DST/AIDS da Secretaria do Estado da Saúde; e Carla Machado, coordenadora executiva do Fórum Paulista de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT). Participou da mesa de abertura Dimitri Salles, coordenador para Política de Diversidade Sexual da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo. A abordagem multidisciplinar do evento garantiu ao público o contato com visões distintas sobre o tema – partindo da medicina, passando pelo direito e finalizado com a vivência prática dos transexuais.

Os palestrantes fizeram críticas ao Decreto Estadual 55.588/2010, que permitiu aos transexuais o direito de modificar o ‘nome social’ em documentos oficiais. A lei determina que o novo nome seja colocado entre parênteses após o nome de batismo, permitindo assim a exposição do nome que nega a identidade de gênero do indivíduo. “É terrível mostrar a nossa cédula de identidade e lidar com o preconceito na cara das pessoas”, afirmou Carla Machado, que, por diversas vezes, enfrentou situações semelhantes. “As pessoas olham, têm medo da gente e nos ridicularizam pelas costas. A nossa identidade não pode estar entre parênteses”. A Promotora de Justiça Deborah Kelly também contestou a norma. “Não tem cabimento o Estado garantir a cirurgia de mudança de sexo e criar obstáculos, impedindo que a nova identidade do transexual seja assumida de forma integral”, disse assessora jurídica da PGJ.

O nome social entre parênteses, segundo Alexandre Saadeh, promove justamente o efeito contrário ao objetivo da intervenção cirúrgica. “A importância desta cirurgia é fazer com que esta pessoa não se sinta uma anormalidade”. Na Inglaterra, a lei determina a privacidade obrigatória do histórico médico e social do indivíduo que realizou a cirurgia, sob pena de 5 anos de reclusão e multa de 5 mil libras. O Brasil anda a passos trôpegos na garantia deste direito. A promotora de justiça Deborah Kelly criticou o Projeto de Lei 72/2007, que determina que o termo ‘transexual’ qualifique o sexo do indivíduo nos documentos oficiais. A assessora da PGJ apresentou algumas jurisprudências controversas, entre elas, uma que reconhece a alteração do nome e do sexo, mas que determina que esta concessão se torne pública, e outras que alteram o nome, mas negam a alteração do sexo. “Deve haver uma coerência na concessão dos direitos”, contestou a Promotora de Justiça.

Deborah Kelly apresentou uma rica diversidade de decisões internacionais sobre os direitos dos transexuais e informou que, no dia 26 de outubro, foi levada à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos uma reclamação contra o Brasil pelo alto índice de assassinatos contra homossexuais no Brasil – o número de mortes cresceu 62% nos últimos três anos, sendo os transexuais as vítimas mais vulneráveis. “Normalmente, eles não tem coragem de ir às delegacias por serem os mais discriminados”, afirmou Deborah. Segundo a promotora, as cortes internacionais são acionadas quando se esgotam as tentativas nas instâncias nacionais.

A principal polêmica entre os palestrantes foi a categorização da transexualidade como uma doença – o transexualismo é identificado pelo CID 10 – F 64.0. Alexandre Saadeh sustentou que, de fato, trata-se de um transtorno de identidade de gênero e citou os aspectos psiquiátricos forenses. No entanto, o médico acredita que a inclusão no CID não é o aspecto mais importante a ser discutido. “O que precisamos garantir é o atendimento integral aos transexuais”. O Promotor de Justiça Reynaldo Mapelli Júnior discordou. “Faz toda a diferença para um indivíduo ser visto como um doente”.

Em relação à cobertura do Sistema Único de Saúde das cirurgias de mudança de sexo – que correria o risco de não ser concedida caso o transexualismo seja retirado do CID – Mapelli sustentou que o conceito de saúde não se restringe à ausência de enfermidades. “Saúde é bem estar físico, psicológico e social”. Na visão do promotor, portanto, o SUS deve continuar oferecendo o serviço para garantir o bem estar psíquico do cidadão, independente da exclusão da transexualidade do CID. Saadeh ressaltou que, para os médicos, será muito difícil justificar uma intervenção cirúrgica sem um fundamento científico. “O que se busca hoje é uma causa biológica para o transexualismo”, afirmou o psiquiatra, ao citar a grande influência de andrógenos circulantes durante a gestação do transexual. “O desenvolvimento do cérebro deles é diferente do resto do corpo”.

Saadeh ressaltou que nem todos que desejam a cirurgia estão enquadrados no perfil para mudar de sexo devido à grande incidência de pessoas que passam por uma fase de instabilidade sexual e que não são, necessariamente, transexuais. “É fundamental a vivência do indivíduo no papel do gênero”, disse. “Por isso, é impossível determinar se uma criança é um transexual”.

Clara Cavalcante questionou a percepção social de que os transexuais são todos iguais. “Não podemos padronizar os transexuais em um CID”, disse. “Temos trajetórias diferentes porque andamos com pés diferentes”. A psicóloga também alertou para a confusão que a sociedade faz entre os termos ‘transexualidade’ e ‘homossexualidade’. “Se a lei de criminalização da homofobia não for bem elaborada, podemos ser excluídos dela por não sermos homossexuais”, ponderou. A falta de entendimento das terminologias também foi ressaltada pelo médico Alexandre Saadeh. “É possível ter uma identidade de gênero com o sexo oposto e uma orientação sexual pelo mesmo sexo”, esclareceu o médico, diferenciando a transexualidade da homossexualidade. “Um homem pode desejar ter o corpo de uma mulher para se relacionar com outras mulheres ou com homens”.

Os direitos dos transexuais e homossexuais é um tema novo no universo jurídico. A Promotoria de Justiça Direitos Humanos foi criada há pouco mais de um ano e, apenas em 2008, foi realizada a 1ª Conferência Nacional LGBT no País. A Secretaria Nacional de Direitos Humanos aprovou um 2009 o ‘Plano Nacional da Cidadania e Direitos Humanos LGBT’ - o primeiro marco normativo dos direitos desta população no Brasil. O projeto de criminalização da homofobia anda a passos lentos e ainda encontra barreiras jurídicas e religiosas. “Este é um dos grandes eventos alinhados com uma das propostas da Escola Superior do Ministério Público: a discussão sobre os temas mais atuais ligados aos Direitos Humanos”, afirmou a Procuradora de Justiça Eloisa de Sousa Arruda, diretora do Centro de Estudos do Ministério Público.

“A maioria dos transexuais não sabem que o Ministério Público pode nos ajudar. Por isto, é tão importante a realização de eventos desta natureza”, parabenizou Carla Machado.

Fonte: Carina Rabelo - Jornalista da Escola Superior do Ministério Público

Fonte: http://www.esmp.sp.gov.br/2010/esmp_plural_em_busca_do_anonimato.html

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