sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Novos diretos e visibilidades para os Homens Trans no Brasil


Márcia Arán
Professora Adjunta do Instituto de Medicina Social da UERJ

No dia 3 de setembro do presente ano, o Conselho Federal de Medicina publicou no Diário Oficial da União uma nova resolução sobre a assistência a transexuais no Brasil (Resolução n° 1.955/2010). A partir desta data, o CFM passou a considerar que os procedimentos de retiradas de mamas, ovários e útero no caso de Homens transexuais deixam de ser experimentais e podem ser feitas em qualquer hospital público e/ou privado que sigam as recomendações do Conselho. O tratamento de neofaloplastia (construção do pênis) ainda não foi liberado e permanece em caráter experimental.

Esta Resolução foi baseada num Parecer (Processo-Consulta CFM n° 8.883/09 – Parecer CFM n20/10) realizado a partir de uma solicitação encaminhada pelo Promotor de Justiça Dr. Diaulas Costa Ribeiro do MPDFT/ Pró Vida, assinada por Alexandre Santos (Ativista. Presidente da Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo e membro da Red Latinoamericana y del Caribe de personas trans – RED LACTRANS) e mais 16 representantes que incluem profissionais de saúde, integrantes de Centros de Referência, profissionais de Ambulatórios especializadas, pesquisadores acadêmicos, representantes do Ministério da Saúde e da Secretaria de Direitos Humanos, advogados, representantes do movimento social, entre outros (1).

O Parecer do Conselho se refere a esta reivindicação afirmando que “os autores do texto abordam particularmente a situação de homens transexuais (FtM), ou seja indivíduos de sexo genético feminino que desejam viver socialmente como homens. Neste contexto, há o reconhecimento de que a construção genital do fenótipo feminino para masculino, a neofalosplastia, seja mantida como experimental, tendo em vista as limitações funcionais do órgão construído cirurgicamente. Esse ditame é considerado consensual até o momento. Entretanto o documento questiona o motivo de ainda serem considerados como de caráter experimental procedimentos cirúrgicos reconhecidos, a exemplo da adenomastectomia (substituição das mamas por uma prótese de silicone), histerectomia (remoção do útero) ou mesmo a ooforectomia (retirada de um ou ambos os ovários)....Os subscritores entendem que a proibição de tais procedimentos condena os transexuais a se verem impedidos de manifestar livremente a expressão de sua personalidade e solicitam que o CFM retire do caráter experimental as intervenções cirúrgicas sobre gônodas e caracteres sexuais secundários em casos de FtM).

De fato, este documento, fundamentado em argumentos elencados por Flávia Teixeira (2), considera que apesar dos avanços obtidos com a publicação das Portarias do Ministério da Saúde que instituem o Processo Transexualizador no SUS (3) permanecia particularmente preocupante a situação dos homens transexuais (FtM). Já que embora o caráter experimental das cirurgias de transgenitalização FtM se justifique, o mesmo não se sustenta para a mastectomia (retirada das mamas) e a histerectomia. Fazendo com que homens transexuais (FtM) fossem excluídos da assistência frente aos argumentos da limitação técnica da cirurgia de neofaloplastia, embora pudessem se beneficiar diretamente da normatização do Processo Transexualizador.

Considerando que um dos argumentos referidos nas Portarias do Ministério da Saúde é de que a cirurgia de transgenitalização não deve se constituir como única meta a ser atendida pelo Processo Transexualizador; somado ao fato de que as demais cirurgias transexualizadoras para homens transexuais (histerectomia e mastectomia) não encontram, na prática médica, essa conotação de experimental e ainda, que pesquisas demonstram que as demandas dos homens transexuais por acompanhamento endocrinológico e realização das cirurgias de mastectomia, histerectomia, no momento, são mais relevantes do que a busca pela neofaloplastia e metoidioplastia (construção de um pênis a partir do clitóris) (4), os propositores solicitaram ao CFM que fossem retiradas do caráter experimental os procedimentos sobre gônadas e caracteres sexuais secundários em casos de transexuais FtM. Com vistas a futuras mudanças na própria Portaria do SUS.

Atendendo a esta reivindicação que encontra ressonância na demanda prática dos Centros de Referência, o CFM contribui enormemente com a inclusão dos homens trans nos dispositivos assistenciais e com a promoção dos direitos humanos. Embora saibamos que o debate ainda permaneça em relação à exigência do prazo de dois anos de atendimento (já que muitos homens e mulheres trans que procuram os serviços já vivem e são reconhecidos(as) como tais há um tempo significativo para a solicitação da transexualização) e em relação à necessidade do diagnóstico de transtorno de identidade de gênero (já que é mais uma medida de regulamentação do acesso do que propriamente a constatação de uma psicopatologia psiquiatra). O que exige uma reflexão mais aprofundada sobre uma concepção positiva de saúde que permita o acolhimento do sofrimento psíquico e corporal independentemente do diagnóstico de doença (5). Também é importante nos referirmos à necessidade de um investimento na formação de profissionais qualificados e na construção de uma rede básica de saúde. Mesmo considerando todas estas dificuldades, sabemos que medidas como esta do CFM demonstram a possibilidade de realizarmos pactuações mais amplas com todos aqueles comprometidos com uma ética pública e a melhoria da assistência. E mais do que isto, medidas como está muda a vida das pessoas.

Chama a atenção o efeito imediato da divulgação desta resolução. O primeiro deles são as inúmeras reportagens que, embora de forma equivocada continuem se referindo a estes casos como sendo de “mulheres transexuais” (tendo como referência o corpo biológico) começam a dar visibilidade às narrativas dos homens trans no Brasil. O que é fundamental para que possamos conhecer as suas histórias e as suas trajetórias de vida que podem incluir experiências de pertencimento ao gênero masculino desde à infância e/ou vivências como mulheres masculinizadas e/ou transgêneros. O segundo efeito é a reflexão sobre o significado de se possibilitar a transformação corporal de caracteres sexuais secundários sem que seja necessário a realização da transgenitalização. O que nos faz pensar na diversidade das experiências da transexualidade e na importância da individualização do cuidado como parte essencial da noção de integralidade em saúde.

1 - Assinam o documento:
Alexandre Santos; Flavia Teixeira; Tatiana Lionço; Márcia Arán; Daniela Murta; Berenice Bento; Mariluza Terra Silveira; Eloísio Alexandro da Silva; Miriam Ventura; Sérgio Zaidhaft; José Luiz Telles; Lena Peres; Lidiane Ferreira Gonçalves; Ben-Hur Braga Taliberti; Maria Clara Gianna; Emerson Rasera..

2 - TEIXEIRA, Flavia. Vidas que desafiam corpos e sonhos: uma etnografia do construir-se outro no gênero e sexualidade. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, Programa de Doutorado em Ciências Sociais, 2009. (Tese de Doutorado).

3 - Portaria nº. 1.707/GM publicada no DOU nº. 159, terça-feira, 19 de agosto de 2008. Seção1, p.43.

4 - ARAN; M.; MURTA; D. Relatório final da pesquisa Transexualidade e saúde: Condições de acesso e cuidado integral (IMSUERJ/MCT/CNPq/MS/SCTIE/DECIT); BENTO, B. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

5 - ARAN; M.; MURTA; D. Do diagnóstico de transtorno de identidade de gênero às redescrições da experiência da transexualidade: uma reflexão sobre gênero, tecnologia e saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.19, n.1, p.15-41. 2009; LIONÇO, Tatiana. Bioética e sexualidade: o desafio para a superação de práticas correcionais na atenção à saúde de travestis e transexuais. Série Anis (Brasília), v. 54, p. 01-07, 2008

Fonte: http://www.clam.org.br/publique/media/Aran.pdf , por email, por colaboradora.

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