quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Eles (as) estão entre nós

Comportamento

N° Edição: 2150 21.Jan.11 - 21:00 Atualizado em 26.Jan.11 - 11:17

Na tevê, na moda, no atendimento público - os transexuais ocupam espaço na sociedade, que procura se adequar a eles

Débora Rubin e Patrícia Diguê

Um beijo e um paredão. Em uma mesma semana, dois transexuais chamaram a atenção do Brasil. Lea T., a modelo brasileira lançada pela Givenchy, apareceu na capa da revista “Love” beijando o ícone fashion Kate Moss. Em seguida, Ariadna, a primeira participante a deixar o “Big Brother Brasil 11”, gritou em rede nacional, com orgulho: “Sou a primeira transexual a participar do BBB.” Sim, os transexuais estão cada vez mais inseridos na sociedade, seja de forma silenciosa, como anônimos trabalhando em empresas e repartições públicas, seja nas páginas dos jornais como celebridades.

Por trás dessa gradual mudança, está a luta que os movimentos homossexuais e transexuais vêm travando ao longo das últimas décadas. Mas também um sistema de saúde que começa, enfim, a atender essa parcela da sociedade. O Hospital Estadual Pérola Byington, de São Paulo vai oferecer cirurgias gratuitas para os homens trans, ou seja, mulheres que desejam retirar trompas e útero para se adequar ao gênero masculino. Trinta pessoas já estão esperando pela cirurgia. Uma delas é o paulistano Alexandre Santos, 38 anos, nascido Alexandra. Xandão, como é conhecido, pergunta se não tem como “passar um photoshop” na foto que vai ser publicada. É que o peito, maior símbolo do corpo feminino, incomoda. Ele só usa camisas largas e mal sabe o que é um sutiã. “Tirar meus seios será como tirar um câncer”, desabafa.

A cirurgia de mudança de sexo foi liberada em 1997 pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em caráter experimental, de modo que até ser regulamentada, no ano passado, só hospitais universitários e particulares se arriscavam a fazê-la. “Antes de 1997, os trans tomavam hormônios por conta própria e faziam cirurgias no Exterior”, diz Alexandre Saadeh, psiquiatra e coordenador do Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas (HC), de São Paulo. Há 13 anos trabalhando com transexuais, é Sadeeh quem libera laudos autorizando as cirurgias no HC. Hoje, existem apenas quatro centros de referência em cirurgia no Brasil. O Pérola Byington quer ser mais um deles. “Pretendemos realizar até oito cirurgias por mês”, afirma Luiz Gebrim, diretor do hospital.

Para atender esse público, a instituição fechou uma parceria com o Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais de São Paulo. O Ambulatt faz o acompanhamento psicológico de até dois anos e prepara o laudo para a cirurgia. O serviço foi criado em 2009 pela Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo por uma questão de humanidade. O chamado “público TT” (travestis e transexuais) evita procurar postos de saúde com medo de ser maltratado. “Há desde funcionário que insiste em chamá-los pelo nome de registro até médicos que se recusam a atendê-los”, conta Maria Filomena Cernicchiaro, diretora do Ambulatt.

Se do ponto de vista da saúde os avanços são significativos, pelo lado jurídico as conquistas são mais demoradas. Mudar o corpo e o documento são dois dos maiores desejos dos transexuais. Hoje, para substituir o nome e o sexo na identidade é preciso antes fazer a cirurgia, mas os juízes, no entanto, estão mais sensíveis à causa. A paranaense Carla Amaral, 38 anos, conseguiu um feito: alterou seu nome e sexo na identidade antes mesmo de conseguir entrar no bisturi. A vida, agora, é outra. “Não tenho mais vergonha de ir ao banco ou fazer um curso. Antes, eu ouvia chacotas e saía chorando”, recorda ela. “Agora as pessoas são obrigadas a me chamar de Carla, mesmo que achem alguma coisa estranha.” Ser reconhecido como homem ou como mulher é mais uma questão de documento que de cirurgia, acredita a socióloga Berenice Bento, uma das maiores especialistas no tema e autora do livro “A Reinvenção do Corpo – Sexualidade e Gênero na Experiência Transexual” (Editora Garamond). Na Espanha, cita, existe a Lei de Identidade de Gênero. “Com um laudo médico é possível fazer a mudança de nome em um cartório.”

A agilidade na mudança de nome também resolveria a vida dos travestis, transexuais que não fazem questão da cirurgia, mas que querem mudar de nome. Michelly X,. nascida Alexandre, não quer ser operada. Gosta de ser o que é – mulher, mas com o genital masculino. A estilista é casada há 16 anos com um homem e conta que só não passa por grandes constrangimentos com o RG porque na foto ela aparece como uma mulher. “E linda, por sinal”, brinca Michelly, que no ano passado representou o Brasil no Miss International Queen, na Tailândia, país referência como o melhor lugar para se fazer cirurgia (onde Ariadna, do “BBB”, fez).

A barreira mais difícil, no entanto, ainda é o preconceito. A exclusão começa cedo, na escola, quando eles são chamados de “gays” ou “sapatões”. Muitos acreditam ser homossexuais, mas percebem que alguma coisa ainda está errada. “Só quando me vesti de mulher é que me encontrei”, diz Michelly. Poucos também são aceitos e acolhidos pela família. Carla foi colocada para fora de casa aos 13 anos de idade, por exemplo. Ter um transexual num dos programas mais populares da tevê é comemorado pelos especialistas. Assim como o sucesso internacional da modelo Lea T., a primeira modelo transexual a entrar no ranking do Models.com. Também conhecida por ser a filha do ex-jogador de futebol Toninho Cerezo, Lea T., que aguarda para fazer a cirurgia, vem desfilar no São Paulo Fashion Week. “Os trans estão cada vez mais aceitos. Ficou no passado aquela visão de que transexual ou era prostituta ou cabeleireiro”, acredita Sadeeh, do HC. Mas ainda há muito o que ser feito. “Não deixa de ser curioso que o primeiro transexual do “BBB” tenha sido também o primeiro eliminado. Eles estão mostrando mais a cara, mas a sociedade ainda se recusa a olhar para eles”, afirma Berenice Bento. Em outras palavras, eles estão adequando seus corpos e documentos. Agora só falta a sociedade se adequar a eles.

Na íntegra

Confira os depoimentos de transexuais entrevistados para a reportagem "Eles(as) estão entrre nós", na ISTOÉ desta semana

Débora Rubin e Patrícia Diguê

Alexandre Santos, paulistano, 38 anos
Desempregado

“Põe um fotoshop na foto”, brinca Alexandre ao ser fotografado, pedindo para a ISTOÉ “retirar” seus seios da foto. As mamas são a parte do corpo que mais o incomoda. “É o que me mostra como mulher no mundo. De braços cruzados eu sou homem, quando descruzo sou mulher”. Ele não veste sutiã e esconde os seios com camisas largas. Usou faixa para disfarçar o volume por anos. “Tirar meus seios será como tirar um câncer. Não é uma mutilação, apenas quero adequar o meu corpo”, desabafa. “Meu sonho, toda vez que fecho os olhos, é tomar um banho de mar sem camiseta”.

Ele é um dos que aguardam para passar pela cirurgia de retirada das mamas e dos órgãos reprodutores femininos no Hospital Estadual Pérola Byigton. “Isso pode parecer bizarro, mas é libertador saber que estou chegando lá. Estou pronto”. O passo seguinte será entrar com processo de mudança de nome. “Aí minha vida vai mudar, porque vou ficar com tanta auto-estima que vou conseguir emprego e voltar a ter uma vida produtiva”.

Por causa de um mioma, ele havia conseguido, quatro anos atrás, autorização para retirar os órgãos, mas a médica que a atendeu na data marcada resolveu voltar atrás. “Saí da mesa de cirurgia e tenho o mioma até hoje, ela disse que não queria saber se eu era transexual”. Menstruar é outra agressão todos os meses. “A sociedade já me reconhece como homem, então não é necessário que eu menstrue”.

Na adolescência e juventude, ele acabou se aproximando das lésbicas. “Não sabia nada sobre transexualidade e sofria preconceito até das lésbicas, que me diziam que eu não precisava me masculinizar. Só fui descobrir que eu era transexual aos 31 anos”. Ele acabou se casando com uma homossexual, com quem viveu por 8 anos.

Alexandre tem uma filha de 19 anos. Quando era casado, atendeu ao pedido da esposa e teve relação com um amigo gay.“Foi horrível, senti como se estivesse sendo estuprado. Fomos no médico e a relação aconteceu no período fértil, uma única vez”, relembra. “Eu já tinha falado que não iria fazer mais de uma vez. Então fiquei ‘grávido’. Na maternidade, não sabia o que fazer, também não consegui amamentar, ela tomou leite materno, mas era na seringa”.

A adolescente o chama de “pãe” e sabe de toda a história. Na certidão de nascimento, Alexandre é a mãe, com o nome de batismo (Alexandra) e o pai é desconhecido. “Ela já sofreu bastante com isso, mas hoje tira de letra, até já terminou um namoro porque o rapaz disse que se envergonhava de mim”. Alexandre só não sabe o que acontecerá com os documentos da filha quando ele mudar para o sexo masculino no RG. A companheira morreu quando a bebê tinha três anos. Hoje, ele namora uma heterossexual, cuja família o aceita.

Alexandre tomou testosterona por anos sem qualquer acompanhamento. Comprava clandestinamente, mas teve dois AVCs quatro anos atrás e teve que parar. “Nasceu até um pelinho de barba no meu rosto”, conta com bom humor. “A testosterona faz o homem trans sair da marginalidade. Só queremos adaptar o nosso corpo ao que a gente é, nascemos com a embalagem errada”.

Sua vida é uma sequência de humilhações. Aos 16, levou uma surra de um grupo de garotos, que queriam que ele provasse ser homem - e ainda teve de ouvir o comentário do policial que apareceu no local: “Também, vestida deste jeito”. Recentemente, tentou alugar um apartamento e ouviu do proprietário que ele não alugava o lugar para gente como ele.

Para Alexandre, hoje há mais informação. “Mas não precisam aceitar, só queremos que nos respeitem”.

Carla Amaral, paranaense, 38 anos
Funcionária da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais

O nome de mulher e o sexo feminino na carteira de identidade são as duas coisas que a paranaense Carla Amaral, 38 anos, mais se orgulha na vida. Ela nasceu um menino, com um nome que diz já não se lembrar, e desde os primeiros anos da infância se comportava como o sexo oposto. Ela gostava de brincar de bonecas e casinha e odiava futebol. Carla conseguiu a nova identidade faz três anos, depois de um processo judicial de dois, onde até a própria mãe teve de ser testemunha de sua transexualidade. E foi a primeira do estado a conseguir adotar o nome social mesmo sem ter feito a cirurgia de troca de sexo. “Meu sexo psicológico é feminino, por isso eu quero ser reconhecida como mulher, independente da minha genitália”.

A vida dela mudou depois de trocar a identidade. “Agora não tenho mais vergonha de ir ao banco ou fazer um curso, por exemplo. Antes ouvia chacotas, risadas, comentários e ficava triste, revoltada ou em silencio, saía chorando. Agora as pessoas são obrigadas a me chamar de Carla, mesmo que achem alguma coisa estranha em mim”, comemora.

A família hoje a respeita, mas a infância e adolescência foram difíceis. “Isso é coisa de menina” era o que ela mais ouvia. Era reprimida, mas escolhia brincadeiras de menina mesmo assim, porque para ela era o natural. “Eu não entendia porque não podia, aí me isolava”. Na escola, diziam que ela tinha problema. Aos 13 anos, já era uma mulher assumida. E foi expulsa de casa. Descobriu a sexualidade ao se apaixonar por um garoto que via pela janela. “Nunca olhei para outra mulher com outros olhos”.

A adolescência foi ainda mais complicada. Ela cresceu rápido - chegou a um 1,78 metro - e era cheia de complexos. Então resolveu ir atrás do corpo que sonhava, botou silicone nos peitos e quadris e fez cirurgia plástica no nariz. Aos 15 anos, começou a usar hormônios, os seios cresceram, os pêlos caíram, a pele ficou mais sensível e as formas se tornaram mais andróginas. Tomou hormônio por 20 anos.

Carla chegou a se prostituir para sobreviver. Não arrumava emprego por causa do preconceito. “Me prostitui por três anos, porque não conseguia trabalho e quase passei fome”. Aos 21, conheceu um grande amor, um heterossexual que estava prestes a se casar e largou tudo por sua causa. Ficaram juntos por cinco anos, como um casal normal.

Hoje, ela aguarda para fazer a cirurgia de mudança de sexo pelo SUS, vai ganhar uma neovagina. “É estranho ter um órgão sexual masculino, é como se estivesse faltando alguma coisa em mim. Muitas vezes acordei sem vontade de viver, não conseguia me olhar no espelho, vi gente se mutilar
sozinha, mas eu tive medo. Você vive na condição de um gênero, mas quando se vê nua, se depara com a realidade”.

Para ela, a eliminação de Ariadna, do BBB, se deve ao preconceito, já que divulgaram antes a condição dela, desnecessariamente. “A transexualidade ainda é algo novo para as pessoas, mas houve avanços. Esta semana fui à posse de uma amiga trans como professora. Ela nem tem nome de mulher ainda, mas a chamaram pelo nome pessoal”.

Michelly X, paulistana, 38 anos
Estilista

A transformação de Alexandre em Michelly foi gradual. Na adolescência, ela achava que era apenas um rapaz gay. “Mas eu era um gay infeliz, não me reconhecia naquela turma”. A primeira vez que ela se vestiu de mulher, se encontrou. Ela tinha 20 anos. Durante uma década, ela se vestiu de mulher apenas aos fins de semana. “Eu não via a hora do final de semana chegar, era o momento mais feliz”. Naqueles tempos, trabalhava como transformista ao mesmo tempo em que dava os primeiros passos como estilista. Hoje tem um ateliê próprio no Tatuapé, São Paulo, com dois funcionários. Faz roupa sob encomenda. Há seis anos, vive 24 horas como um travesti. Completou sua transformação ao colocar silicone no bumbum, nos seios, mudar o nariz e aumentar o cabelo. E toma hormônios, para deixar o corpo mais arredondado.

Ela só não quer fazer cirurgia de mudança de sexo porque tem medo de perder o prazer. “Me sentiria castrada”. Casada há 16 anos com um homem de orientação heterossexual, ela revela que ele gostaria que ela fizesse a cirurgia, mas já aceitou a vontade dela.

A estilista acredita que só conseguiu ter uma profissão comum e fugir à sina da grande maioria dos travestis – a prostituição – porque foi compreendida e acolhida pela família. Michelly, aliás, é uma homenagem à filha que a mãe dela perdeu logo após o parto. Apesar do trabalho no ateliê, ela mantém seu viés artístico. Em 2008, participou de um concurso de travestis no Silvio Santos. No ano passado, representou o Brasil no Miss International Queen, na Tailândia. Em 2000, foi a Miss Brasil Gay.

Para fugir do preconceito, mais forte contra os travestis e menos com os transexuais, Michelly busca ser discreta, mesmo com seus 1,86 metro de altura. “Não uso muita maquiagem, evito salto e uso roupas discretas. Vou muito à rua 25 de Março comprar tecido. Lá, se reconhecem que você é travesti ou transex, te agridem”.

Michelly já cogitou ter um filho, mas chegou à conclusão de que é melhor não concretizar esse sonho. “Amo crianças e adoraria ter uma. Mas ela seria muito discriminada na escolinha e sofreria demais. Como ficaria a cabeça de uma criança assim?”. A sociedade evoluiu muito, acredita ela, mas ainda há muitas barreiras a serem vencidas.

Fonte: http://www.istoe.com.br/reportagens/121065_ELES+AS+ESTAO+ENTRE+NOS e http://www.istoe.com.br/reportagens/121079_NA+INTEGRA , respectivamente.

OBS: Apesar do título da reportagem fazer menção somente a transexuais mas colocar também a história de uma travesti, o que poderia gerar uma certa confusão nos menos informados, optamos por colocar a reportagem inteira. Não temos nada contra travestis, muito pelo contrário, seríamos hipócritas se tivessémos. Queremos crer que os leitores vão compreender as diferenças explicitadas no quadro que se encontra na reportagem e saberão que, em última instância, tanto transexuais quanto travestis têm direito a uma vida plena, longe do medo, da ignorância e dos pré-conceitos.


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