quinta-feira, 1 de abril de 2010

Porque ter opinião também é importante.


Desfavor do dia 3.3.10 : Flertando com o desastre: Transexual.

Transexual, em um resumo bem simplificado, é aquela pessoa que possuí uma identidade de gênero diferente daquela que lhe foi atribuída no seu nascimento, apresentando sensação de desconforto, impropriedade ou inadequação em relação a seu sexo anatômico. É aquele discurso de ser “uma mulher presa no corpo de um homem” (ou vice versa). Não confundir com os homossexuais, que estão muito contentes com seus corpos, apenas sentem atração por pessoas do mesmo sexo (mil perdões pelas simplificações banalizantes, é que tenho um limite pequeno de páginas para escrever).

Transexualidade ainda é classificado como um “transtorno mental”, porém alguns países como a França já não encaram mais a transexualidade como “doença”, o que a meu ver, é um enorme avanço. Quem foi que disse que uma pessoa de fato não pode ter nascido com o sexo mental diferente do físico? Só porque não aconteceu comigo ou porque eu não entendo, não quer dizer que não exista ou que seja doença. Transexuais existem. Não adianta ficar discutindo aqui o que a gente acha ou deixa de achar da pessoa ser transexual. É uma realidade e é preciso lidar com ela. O foco da discussão não é o que nós pensamos dos transexuais e sim como lidar com a questão na prática.

E não é uma “novidade” dessa vida moderna, de uma geração “perdida” e “sem valores”. Eles existem desde sempre. Um imperador romano (salvo engano, seu nome era Heliogábalo) casou com um escravo e ofereceu metade do seu império para o médico que conseguisse modificar seu sexo cirurgicamente. Há fortes evidências de que o Papa João VIII era na verdade uma mulher travestida de homem. O rei Henrique III, da França, se vestia que nem mulher. Como este, tenho dezenas de exemplos para dar. Então, para aqueles que acreditam que se trata de uma “desgraça dessa nova geração”, pensem duas vezes.

Até mesmo em tribos isoladas da vida “civilizada” há relatos de transexualidade e até mesmo rituais de mudança de sexo. É inerente a alguns seres humanos, em qualquer época, em qualquer contexto social e antropológico. Só porque você não compreende, não quer dizer que não aconteça e que não seja real. Não é loucura da cabeça das pessoas, não é sintoma de doença, não é trauma de infância. É realidade. Pessoas nascem com uma personalidade de um sexo e corpo de outro.

Quando devidamente comprovada a condição de transexual, e por devidamente comprovada, estamos falando de um laudo médico, a lei brasileira autoriza que seja realizada uma cirurgia de Reatribuição Sexual (ou Redesignação Sexual). Entretanto, esta cirurgia só está disponível de forma satisfatória para os homens (sim, isso mesmo, corta fora). Não gosto do termo cirurgia de “mudança de sexo”, pois para os transexuais, eles não estão mudando de sexo, estão apenas corrigindo seus corpos, que não correspondem a suas mentes, suas almas ou qualquer outro nome que se queira dar. Para as mulheres, salvo engano, ainda não é possível realizar cirurgicamente a redesignação sexual.

Eu costumo brincar dizendo que os avanços da medicina são ótimos para a minha vida, mas para a minha profissão são um caos. Porque avanços médicos fodem com o direito. Criam uma lambança nas normas pensadas para situações onde estes avanços não existiam. Fico feliz que exista a cirurgia de redesignação sexual, mas ela criou uma série de dificuldades formais que passo a expor, e peço a opinião de vocês. Não vou entrar em termos técnicos nem aprofundar o assunto, porque isso aqui não é um blog jurídico. Vocês sabem o esquema do Desfavor: conversa como se fosse em uma mesa de bar.

O primeiro problema diz respeito à documentação da pessoa que fez a cirurgia de redesignação sexual. Um transexual chamado Wanderlei que faz a cirurgia e “muda” de sexo, evidentemente não pode continuar com um documento de identidade onde se lê o nome “Wanderlei”, porque puta merda, isso seria vexatório. Imagine o constrangimento que essa pessoa passaria. Imagine uma bela mulher de cabelos longos e seios fartos esperando em uma fila de um repartição pública qualquer, quando um funcionário chama “WANDERLEI DA SILVA!” – e ela tem que se levantar sob os olhares curiosos dos demais presentes. Não pode. Desumano, a meu ver. Acho que deve ser permitida a troca de nome nos documentos. E vocês?

Também me parece extremamente preconceituoso mudar o nome de Wanderlei para Wanderléia e dizer no documento que se trata de uma pessoa do sexo masculino. Daí sempre vem um espírito sem luz dizer que transexual não é mulher, porque não tem útero nem ovário. Ora, se for assim, uma mulher que fez uma histerectomia total deixa de ser mulher? Mudar apenas o nome e deixar o sexo como “masculino” fere igualmente a dignidade da pessoa, concordam?

Tem aqueles que dizem que pode mudar nome, pode constar como “sexo feminino” mas deve constar algum registro na documentação de Wanderlei dizendo que um dia ele foi homem. Porra, que constrangimento! Porque a pessoa se submete a uma cirurgia complicadíssima para se sentir mais adequada, se vai continuar marcada em seu documento de identidade? Acho um absurdo sujeitar uma pessoa a isso. Mas tem quem defenda que isso preservaria o resto da sociedade, numa vibe meio “não levar gato por lebre”. Geralmente são os homens que usam este argumento. Eles tem medo de um dia sair com a bela Wanderléia e depois de um tempo de namoro descobrir que ela já foi Wanderlei. Gente, vamos abrir a cabecinha? Nos apaixonamos por SERES HUMANOS. Faz tanta diferença se Wanderléia já foi Wanderlei?

Mais uma polêmica: o Estado deve disponibilizar esta cirurgia de forma gratuita? Na minha opinião, nem tem o que pensar. Se o Estado gasta rios de dinheiro tratando imbecilóides que VOLUNTARIAMENTE fumaram a vida toda detonando seus pulmões, POR PURA IMBECILIDADE E FALTA DE FORÇA DE VONTADE, porque não tratar alguém que não concorreu em nada para seu problema? O Estado gasta fortunas com gordinhos que enchem o cu de doce e acabam com artérias entupidas e diabéticos, por pura preguiça, mas não pode amenizar o sofrimento de alguém que não tem culpa de seu sofrimento? O Estado faz redução de estômago em pessoas que estão do tamanho do Balão Mágico porque não tem a força de vontade de parar de comer feito porcos e não quer gastar dinheiro com pessoas que estão batalhando para se adequarem à sociedade?

E tem mais um questionamento. Como eu disse, ainda não se inventou uma cirurgia de reatribuição sexual efetiva para mulheres que se sentem homens. Então, todas as mulheres transexuais estão condenadas a ter em sua identidade o nome de mulher, mesmo se vestindo e se sentindo como um homem? Mesmo fazendo tratamentos hormonais que as deixa com aparência de homem? Seria a cirurgia condição absoluta para a troca de nome na certidão de nascimento e na identidade? Isso criaria uma injustiça, porque todos os homens transexuais poderiam ter a chance de mudar de nome e sexo e as mulheres não, por culpa da medicina que não é capaz de lhes dar esta cirurgia.

Ao mesmo tempo, se a gente admitir a possibilidade de mudança de nome e sexo da pessoa sem a cirurgia, poderíamos criar a seguinte situação: Wanderléia, certidão de nascimento e carteira de identidade constando sexo feminino, tem pênis. Estranho. Ser injusto ou ser incoerente? Escolha difícil.

E vem mais um problema: Wanderlei tentou abafar sua condição de transexual por medo da reprovação social. Casou e teve filhos. Um dia, não agüentou mais sufocar sua verdadeira identidade e decidiu fazer a cirurgia de redesignação sexual. Depois de operado, mudou seus documentos. Como fica a certidão de nascimento do filho de Wanderléia? Seria correto mudar o nome do pai para um nome feminino? Isso é nocivo para a criança? Deixa como Wanderlei na documentação da criança e como Wanderléia na documentação do transexual? Não pode. Ou muda tudo ou não muda nada. Que porra é essa de uma pessoa ser mulher em um documento e homem no outro? O que fazer?

O Judiciária brasileiro vem aceitando adoção de crianças por casais em união homoafetiva. Então, se um casal de homossexuais pode adotar uma criança, constando na documentação da criança dois pais ou duas mães, porque não mudar o nome se o pai se mostrar transexual? Tem quem diga que isso iria expor a criança. Olha, quando seu pai usa salto 12, coloca silicone no peito, usa batom e corta fora o bilau, não tem muito como esconder essa transformação da criança, portanto, não sei bem se isso é algo do qual a criança possa ser “poupada”. É uma realidade, quanto mais naturalmente ela for aceita, melhor.

A lei brasileira ainda não tem respostas seguras para todas essas questões que eu coloquei. Os entendimentos variam. O certo é que se busca sempre preservar a dignidade da pessoa humana.

Eu sei que muitos de vocês estão torcendo o nariz para mim agora. Mas vamos ter um pingo de humanidade? Nada como se colocar no lugar dos outros para emitir uma opinião. Já pensou como deve ser DIFÍCIL PRA CARALHO você se sentir de um sexo e seu corpo ser de outro? Já pensou? Se muitos acham um tormento conviver com detalhes do corpo com os quais não se sentem bem, como um nariz feio ou seis pequenos, imagina a merda que é você não gostar do seu corpo como gênero?

Porque se uma patricinha não gosta do seu nariz de batatinha ela pode ir ao cirurgião corrigir seu nariz de porquinha (a ainda ostentar isso), enquanto que uma pessoa que sofre uma sensação de inadequação mil vezes maior não pode ter um conforto para amenizar seu sofrimento? E muitas vezes nem mesmo a cirurgia ameniza o sofrimento, é necessário mais para uma vida minimamente digna: cirurgia + mudança de toda a documentação, sem que conste em nenhum lugar nenhum registro de que um dia a pessoa foi do sexo oposto.

Daí vem sempre alguém dizer que não podemos brincar de Deus e que se começarmos a mudar o sexo assim vamos acabar criando situações aberrantes. Primeiro que a gente brinca de Deus o tempo todo. Se a medicina não brincasse de Deus, eu mesma não estava aqui, teria morrido aos 25 anos. Mantemos vivas pessoas que, pelos ditames da mãe natureza, deveriam estar mortas. Modificamos corpos até que percam sua aparência humana (Michael Jackson? Oi?). Escolhemos características de bebês geneticamente, criando um supermercado de gente... etc, etc. Mas, na hora de conferir condições dignas a um ser humano em sofrimento por não se sentir adequado a seu gênero, as pessoas pedem moderação? Não, por favor não. Não posso com esse discurso.

“Mas Sally você gostaria que mudassem o sexo ou o nome do seu pai na sua certidão de nascimento?”. Se meu pai se vestisse como uma mulher, falasse como uma mulher, e se sentisse como uma mulher, SIM, POR FAVOR! Ou por acaso eu quero estar com meu pai, uma loira gostosa, no aeroporto na fila do embarque e ouvir alguém chamando ele de Wanderlei?

Já vi gente propondo criar um terceiro gênero de banheiro público além do Feminino e do Masculino: Transexual. Gente, se o homem CORTOU FORA O PRÓPRIO PAU, vocês acham mesmo que ele vai ficar manjando mulher no banheiro feminino? Tem dó de mim! A coisa tem que caminhar para a inclusão, para a compreensão e para a aceitação, e não reforçar a discriminação com um banheiro que mostra à sociedade que a pessoa é transexual!

Para aqueles que estão se contorcendo na cadeira e pensando que isso não é uma coisa “natural”, lamento. A cirurgia de redesignação sexual é uma realidade e vem sendo realizada no Brasil. Aceitem. Aceitem a escolha alheia. Pensem, sem dar nomes, classificar como “doença”, “aberração” ou qualquer outra definição preconceituosa. Apenas PENSEM NA SITUAÇÃO: você, se sentindo de um sexo, em um corpo de outro sexo. Pensem como deve ser difícil viver assim. O peso que essas pessoas carregam é por si só suficiente, não precisam de julgamentos, preconceitos e discriminação. E muitas vezes, mesmo com este complicador enorme, elas são melhores pessoas do que nós, aqueles ditos como “socialmente adequados”.

Façam um exercício de imaginação comigo. Supondo que todos pudessem modificar seus sexos e documentos de identidade. Supondo que você descobrisse hoje que a pessoa que você AMA já foi do sexo oposto. Você largaria essa pessoa? Se alguém respondeu “sim”, vou ficar muito desapontada.

O ser humano é complexo, é diverso, é inclassificável nesses rótulos fixos ultrapassados. Somos todos SERES HUMANOS, foda-se o que cada um faz com seu corpo ou com a sua sexualidade. Muito fácil julgar a sexualidade DOS OUTROS, quando esta se torna pública e a nossa continua privada. Se a sexualidade de TODOS fosse pública, garanto que descobriríamos que os heterossexuais também fazem coisas que podem ser objeto de preconceito e discriminação. Se a sua sexualidade, suas preferências, suas práticas, se tornassem públicas... será que parte da sociedade não te discriminaria? Pense nisso. E pare de jogar pedras naquelas pessoas cuja sexualidade se tornou pública por total falta de opção.

Para dizer que nunca mais volta no Desfavor e depois voltar e ficar metendo o malho na gente, para dizer que transexual é quando se trata de uma pessoa da sua família, porque se for o vizinho é um viadinho e para perguntar ao Somir se ele anda feliz com os temas que eu venho escolhendo: sally@desfavor.com


NDAB: Por favor, não se atenham a possíveis trocas de "conceitos", p.ex. homens transexuais como mtfs e vice versa, e sim ao todo do texto. Ninguém é perfeito (ufa!), nem sabe tudo (ainda bem), mas opiniões que validem, acima de tudo, o direito a ser quem se é, sempre terão seu lugar. Algumas opiniões expressadas no texto acima, não são necessariamente as mesmas do autor deste blog.

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