terça-feira, 30 de março de 2010

Histórias de Vida X - Sim, tudo é possível por Ultraman


Até os 35 anos minha vida foi um quebra cabeças de peças desconexas. E depois disso, a maneira com que essas peças se encaixaram...juro que se não tivesse acontecido comigo, se alguém me contasse, eu não acreditaria.

As lembranças dessa história vêm de muito tempo, pois desde os 2 anos tudo o que acontecia comigo e à minha volta está guardado de maneira bem clara e lógica na memória.

A infância toda, com raras exceções, eu praticamente não me dava conta de que não era menino. Sentia-me menino, me vestia como menino, brincava feito menino e, por minha sorte, podia compartilhar tudo isso com minha melhor amiga, vizinha de rua, que era igual a mim. Maria Alice, o nome dela. Lice, como era costume abreviar os nomes no interior de São Paulo.

Graças a Deus, nunca houve qualquer tipo de repressão por parte das famílias. Nem da minha e nem da Lice.

Podíamos cortar o cabelo curto, podíamos usar shorts e camisetas, jogar bola com os meninos, subir em árvore, brincar de revólver. Realmente, nem precisava parar para pensar que não éramos iguais aos outros meninos. Mas às vezes parávamos. E nessas vezes lembro que em nossas conversas de criança, cheias de fantasia, falávamos de um futuro tipo Jetsons, onde entraríamos numa cápsula e poderíamos "virar homens".

Falava isso também com minha mãe que só ria e afirmava que isso era impossível.

Uma infância boa, que começou a desmoronar, quando apareceram os seios. Os da Lice vieram antes. Nunca nem comentamos entre nós esse fato. Nos limitávamos a tentar esconder ao máximo aquilo, usando camisetas e mais camisetas por baixo da blusa. No meio disso tudo veio o fim do primário e as cobranças na escola: "porque vocês não usam sutiã????" Resistimos bravamente até que as cobranças foram ficando insuportáveis. Primeiro foi a Lice e depois eu a experimentar a sensação humilhante de colocar um sutiã.

Pior que essa sensação, só a menstruação. Chorei por 5 dias seguidos e, pela primeira vez na vida, senti uma vontade profunda e legítima de morrer. Mas as coisas se acomodam e, no final das contas, ainda passava os meus dias quase que sem lembrar que não era homem. A realidade só me atingia como um soco no estômago, nas vezes em que ouvia alguém comentando "lá vai a mulher-macho". Cada insinuação, cada ocorrência era humilhante. Nunca me senti homossexual, mas como explicar isso se nem eu mesmo entendia.

Na juventude e na hora de começar a trabalhar decidi que mudararia aquela situação, que ninguém mais me chamaria de sapatão.

Por algum tempo e em vários momentos da minha vida, me forcei a vestir roupa de mulher e tentar me comportar como mulher. Foi assim quando entrei na faculdade, foi assim quando fui arrumar meu primeiro emprego. Mas todas às vezes a tentativa era em vão. Eu simplesmente não conseguia me manter por muito tempo naquelas roupas e nem naquela atitude. Sem perceber, eu já era a mulher-macho novamente. Sabia que todo mundo notava, mas tinha pânico de pensar nisso. Tinha pânico de arrastar esse rótulo vida afora.

Fui levando assim, até me envolver com uma mulher que se apaixonou por mim, mas logo passou a me evitar. A cabeça dela deu um nó. Primeiro porque não entendia o fato de gostar de mim, já que ela não era homossexual. Depois foi porque esse nosso romance virou um escândalo na cidade pequena do interior, num tempo em que ser gay era a vergonha máxima para uma pessoa e sua família.

Nos distanciamos até que, 4 anos mais tarde, voltamos a nos encontrar já morando em São Paulo. Nessa época eu já estava formado em comunicação e estava trabalhando em uma grande agência de propaganda de Sampa, como redator júnior.

Para não entrar em detalhes que tornariam esse depoimento muito longo, vou contar em poucas linhas, que vivi 15 anos com essa mulher. Mas um relacionamento que não nos satisfazia. Ela porque não aceitava estar casada com um sapatão e não permitia que tivéssemos uma vida sexual. Eu porque queria ter uma vida sexual.

Mas enfim, a situação acabou tornado-se cômoda para as duas partes e fomos tocando assim. Achei que minha vida tinha se resumido a isso: engordar, trabalhar e viver com uma amiga. Achei que era o melhor que podia acontecer para alguém nas minhas condições e fui remando.

Remei, remei, até que minha vida profissional (até então estável) começou a afundar. A agência onde trabalhava começou a entrar em crise e foi minguando, minguando, até não ter mais como pagar os funcionários. Agarrei - me naquele barco furado, pois morria de medo de ter que enfrentar o mercado de trabalho. Sabia que minha aparência era um obstáculo.

O resumo da ópera é que a agência quebrou e estávamos sem nenhum tostão. Comecei a fazer freelancer enquanto procurava outro trabalho. Não encontrava emprego, não tinha como pagar aluguel e tive que entregar meu carro para o banco... não tinha nem como pagar o supermercado. Minha mulher, ou amiga, também estava sem emprego.

Continua...

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