sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Ir a padaria é um ato político.

Publicado em julho 20, 2010 por Erika

Um dos meus filmes preferidos, atualmente, é o título israelense ‘The bubble’, uma alusão a sociedade que vive em apartamentos, onde toda uma vida se passa dentro de bolhas. Por incrível que possa parecer esse post não é sobre o filme em questão. Só queria me valer da alusão a bolha.

Penso que vivemos em bolhas, mas não em apartamentos que se transformam em bolhas como no filme citado acima. Vivemos em micro-bolhas. Onde cada um se importa só com o que acontece, ou não, consigo mesmo. Em que nos preocupamos só com o que somos e temos, ‘futura advogada, classe média, míope’ (todos somos míopes em algum sentido).‘Tenho ‘n’ coisas para me preocupar, porque me preocuparia com política? Com a ‘causa’ gay? Faço parte de inúmeras ‘minorias’, porque levantar a bandeira do movimento gay?’

Vivemos em bolhas. BOLHAS!

E por vivermos em bolhas, talvez não percebamos que para algumas pessoas o simples gesto de sair de casa e ir a padaria é um ato político. Um ato heróico muitas vezes, ou na maioria delas.

Mas talvez por vivermos em bolhas não percebamos isso.

Hoje, 19 de julho de 2010, ocorreu o lançamento do documentário sobre transexualidade e travestinidade que retrata as muitas histórias de vida de travestis e transexuais de BH.

Meu querido amigo Daniel bem ressaltou em sua fala que o lançamento deste documentário representa um marco para a história das travestis e transexuais em BH, vou além, acho que é um marco para as travestis e transexuais do Brasil, não tenho notícias de um documentário dessa magnitude sobre tal tema.

Assim que possível disponibilizarei no blog o documentário. Quero escrever também sobre o documentário, mas agora farei a transcrição de uma fala de hoje que muito me marcou e gostaria de compartilhar com vocês.

Por questões técnicas a exibição do documentário atrasou um pouco e para suprir uma lacuna, depois que todas as transexuais e travestis convidadas haviam falado, um Frei foi chamado para comentar sua participação no projeto. Eu como boa mineira que sou e quase atéia fiquei um bocado desconfiada de tal fala. Oras, o que um Frei poderia falar de transfobia?

De cara o Frei criticou a postura dos representantes das religiões e do trato que elas dão a sexualidade. O modo como ignoram o preceito fundamental das religiões, o amor (e o respeito). Achei bacana. Mas não foi isso que me chamou a atenção e que me fez correr pra escrever isso antes que desapareça da minha memória… Não ia desaparecer, por óbvio, era empolgação em compartilhar isso com o mundo. Ou com parte dele.

O Frei é um pesquisador de educação e integra o Educação Sem Homofobia, um programa do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG (NUH).

Por ser um pesquisador do NUH o Frei estava habituado a conviver com transexuais e travestis, sempre participava de algum evento, alguma mesa de debate, encontrava as transexuais e travestis no corredor da faculdade, mas nunca, nunca havia caminhado com travestis e transexuais.

Eu também não, infelizmente. E creio que você que está lendo este texto também não, como já disse no início do post, vivemos em bolhas, eu, o Frei, você e o resto.

Um dia o Frei encontrou a Lili Anderson* e a Sarug** no corredor da Fafich e resolveram almoçar, fizeram um trajeto de cerca de 1km até o bandeijão da UFMG.

Nesse dia em que resolveu caminhar até o bandeijão com Lili e Sarug, a fina película da bolha do Frei foi estourada. Ou melhor, foi estilhaçada pelo olhar de centenas de estudantes, de centenas de ilustríssimos alunos da UFMG.

Certamente os olhares não eram para o Frei, não tinham como alvo o seu corpo masculino, aqueles olhares de reprovação, que cortavam feito navalha, não se dirigiam ao Frei. Não. Aqueles olhares, olhares de ódio e de escárnio, aquelas laminas muito bem afiadas se dirigiam a Lili e a Sarug.

Durante toda a caminhada de cerca de 1km, que mais parecia uma centena de quilômetros, os três foram apontados como seres anormais e fuzilados por olhares, por risadinhas ensurdecedoras.

Sim, ensurdecedoras, mas só para quem não vive em bolhas.

Após essa longuíssima jornada eles chegaram finalmente ao restaurante, onde poderiam desfrutar em paz de um belo almoço e uma aprazível conversa entre amigos. Poderiam?

Creio que não.

O nobre corpo fétido, digo discente da UFMG, que estava presente no refeitório não poderia deixar que aqueles seres ‘anormais’, extraterrestres almoçassem em paz.

E a turba, digo, os civilizados estudantes começaram a apontar para Lili e Sarug e a gritar palavras de ordem e bater talheres na mesa. Toda a atenção se voltou para Lili e Sarug.

O Frei relata que de tanto ódio e vergonha que sentiu teve vontade de apedrejar aqueles alunos e que se tivesse uma navalha teria feito um estrago ali.

Lili e Sarug acalmaram o Frei e sentenciaram:

- Calma Frei, estamos em um ambiente civilizado. Ainda não caminhou conosco pela Praça 7.

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Vivemos em bolhas. Em micro-bolhas de advogados, estudantes, graduandos, mestrandos, doutorandos, designers, funcionários públicos, jornalistas, DJs… VIVEMOS EM BOLHAS. Achamos que gays, lésbicas, transexuais, travestis, mulheres, negros, índios, estrangeiros, whatever, são minorias. Que estas ‘minorias’ tem ‘causas’, ‘bandeiras’ distintas. Que a luta é ‘deles’. E mesmo que você não esteja dentro do modelo (bolha) homem-branco -heterossexual-classe média – cristão, você acha que tem ‘mais o que fazer’ do que empunhar qualquer bandeira de qualquer dessas causas de qualquer uma dessas minorias.

Quero te informar uma coisa meu querido leitor-bolha, não existem várias lutas, bandeiras ou minorias. A luta é uma só e é cotidiana. Lutamos (e você deveria lutar também, e levantar essa sua bunda gorda, ou magra, dessa cadeira) pela redemocratização do Brasil, COTIDIANAMENTE.

Direitos humanos são construídos historicamente e reafirmados cotidianamente. Não existiram desde sempre e podem não durar para sempre. O seu direito de ir e vir, pode ser limitado um dia. Como o meu ainda é. Sou lésbica e preciso de uma lei que me permita a manifestação de afeto em público sob pena de multa para quem me impedir. Mas você vive numa bolha e não percebe isso. Mesmo você leitor-bolha-LGBT não percebe o quão isso é estranho.

Não percebe que não existem travestis e transexuais na sua sala de aula.

Não percebe o número diminuto de negros nas universidades.

Não percebe a número ínfimo de mulheres na política.

Não deve saber também que o indígena é considerado um incapaz pelo Estado e do que isso significa.

Você não percebe que ir a padaria é um ato político para uma transexual ou travesti, por que a sua bolha só permite que você a perceba como uma anormal. E quando ela passa você pensa como é que ela teve coragem de sair de casa.

E eu me pergunto leitor-bolha, como é que você tem coragem de viver numa bolha, de se permitir viver numa bolha, de estar se lixando para o que acontece no mundo, com seus iguais?





*Lili Anderson, é uma transexual feminina e Educadora social, militante ativista dos direitos da pluricidade, integra o NUH/UFMG.

** Sarug Dagir Ribeiro, é uma transexual feminina e possui Graduação em Psicologia (2002) e Mestrado em Letras (2006) pela Universidade Federal de Minas Gerais, atuando principalmente nos seguintes temas: hermafrodita, Herculine Barbin, gênero e sexualidade.

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Érika Pretes, vulgo @inquietudine, uma estudante de Direito, aspirante a militante/ativista dos Direitos Humanos e que vive estourando suas próprias bolhas (e as alheias).

Fonte: http://inquietudine.wordpress.com/2010/07/20/ir-a-padaria-e-um-ato-politico/#comments

OBS: Não, esses vídeos não são sobre homens transexuais, e também são. O texto excelente escrito pela Érika não fala de homens transexuais, e fala também. As bolhas falam de nós. Mas que o mundo, sim, o mundo, meu, seu, de todos, não fale somente, mas seja para além das ditas "diferenças", universal.

2 comentários:

  1. Érika,
    Muito me surpreende uma estudante de direito com pensamentos tão nobres, digo isso por sou estudante de direito, nem tudo está perdido, continue estourando bolhas alheias, para mim o texto foi muito interessante e impactivo, tentarei fazer a minha parte!

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  2. Ptzzz Adorei o texto! parabéns... eh realmente tocante! todos deveriam ler! um abraço

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