quinta-feira, 1 de julho de 2010

Os desafios jurídicos na proteção dos transexuais - Parte 4.


3.2. O SUS e a cirurgia de adequação sexual.

Finalmente, o Sistema Único de Saúde (SUS) vai oferecer cirurgias de adequação sexual para transexuais. Essa conquista foi anunciada, na 1ª Conferência de Estadual de Políticas Públicas para Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (GLBTT), pela Diretora do Departamento de Apoio à Gestão Participativa do Ministério da Saúde, Ana Maria Costa. Ademais, recentemente, o do Ministro da Saúde informou que vai assinar portaria que autoriza o financiamento pelo SUS das operações de transgenitalização.

Tudo começou quando o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública contra a União, requerendo todas as medidas apropriadas para possibilitar aos transexuais a realização, pelo SUS, de todos os procedimentos médicos necessários para garantir a cirurgia de transgenitalização e procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários. O Parquet Federal requereu, ainda, a edição de ato normativo que preveja, de modo expresso, na Tabela de Procedimentos remunerados pelo SUS (Tabela SIH-SUS), de todos os procedimentos cirúrgicos necessários para a realização da cirurgia.

Em primeira instância, a ação foi extinta sem julgamento do mérito, por impossibilidade jurídica do pedido e inadequação da via eleita para a solução da questão posta em juízo. A sentença baseou suas conclusões na natureza programática da norma do artigo 196 da Constituição Federal, inexistindo, direito subjetivo violado.

No provimento judicial argumentou-se que o Poder Judiciário não pode exercer poder legiferante, sendo impróprio solucionar questão trazida de forma global, com efeito erga omnes, em ação civil pública. Considerou ainda que, questões científicas obstam o provimento requerido, uma vez que a Resolução do Conselho Federal de Medicina, considera a cirurgia de transgenitalização de caráter experimental, havendo, inclusive, disposição administrativa pela inclusão do aludido procedimento no âmbito do SUS, a partir de Resolução do Conselho Federal de Medicina que altera a condição atual desse procedimento.

Diante desse resultado negativo, o Ministério Público Federal apelou e a Egrégia 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, deu provimento ao pelo.
O ilustre relator Doutor Roger Raupp Rios magistralmente fundamentou sua decisão nos direitos fundamentais da igualdade, da proibição de discriminação por motivo de sexo, da liberdade, do livre desenvolvimento da personalidade, da privacidade, do respeito à dignidade humana, bem como o direito à saúde.

Com efeito, a exclusão da lista de procedimentos médicos custeados pelo Sistema Único de Saúde das cirurgias de transgenitalização e dos procedimentos complementares, em desfavor de transexuais, configura discriminação proibida constitucionalmente, pois este procedimento já é ofertado no âmbito do SUS a todos os indivíduos que dele necessitam, tais como para pessoas que possuem câncer nas genitálias. Além disso, as cirurgias de adequação sexual não configuram ilícito penal, cuidando-se de tópicas prestações de saúde, sem caráter mutilador.

O direito à saúde, explicitado no artigo 196 da Magna Carta é apenas um desdobramento de um dos fundamentos constitucionais: a dignidade humana. Além disso, ele complementa os artigos 5º, “caput” (que garante o direito à inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, e à segurança) e o 6º (que expressa os direitos saciais) ambos da Constituição Federal.

Como bem asseverou o relator, “o direito à saúde é direito fundamental, dotado de eficácia e aplicabilidade imediatas, apto a produzir direitos e deveres nas relações dos poderes públicos entre si e diante dos cidadãos, superada a noção de norma meramente programática, sob pena de esvaziamento do caráter normativo da Constituição” (21).

A saúde é um direito de todos os cidadãos, e é dever do Estado promovê-la. Para isso, foi criado o Sistema Único de Saúde, que possui como princípio o atendimento integral, como disposto no artigo 198, inciso II, da Magna Carta. Dessa forma, todos os cidadãos têm o direito ao acesso a todos os serviços de saúde e aos procedimentos existentes e previstos no sistema médico.

Portanto, o financiamento de procedimentos médicos existentes e necessários aos cidadãos deve ser feito a todos de forma igualitária, não podendo ser recusado para os transexuais que desejam fazer a cirurgia de neocolpovulvoplastia e neofaloplastia.

A transexualidade é doença internacionalmente reconhecida pela Organização Mundial da Saúde, a partir de recomendação expedida na 9ª Conferência de Revisão, no ano de 1975, e que foi incluída na Classificação Internacional de Doenças – CID 10 – sob o código F64.0, com a seguinte definição: “Trata-se de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar ser corpo tanto quanto possível ao sexo desejado”. Dessa forma, o Estado não pode negar aos transexuais o acesso a procedimento médico existente, possível e que é ofertado pela rede hospitalar, como é o caso das cirurgias de neocolpovulvoplastia e neofaloplastia.

O único tratamento médico que os transexuais necessitam, e que é aceito consensualmente pela comunidade científica internacional, é a cirurgia de adequação sexual. Tal procedimento já poderia ser pago pelo SUS com base em procedimento similar previsto na Tabela de Procedimentos. A inclusão dos procedimentos médicos relativos à transexualidade, dentre aqueles previstos na Tabela SIH-SUS, configura correção judicial diante de discriminação lesiva aos direitos fundamentais de transexuais, uma vez que tais prestações já estão contempladas pelo sistema público de saúde.

Ademais, essa cirurgia já foi feita inúmeras vezes, em hospitais universitários no país inteiro. Destarte, disponibilizar cirurgia similar a pessoas que possuem outras moléstias, tais como pessoas que sofreram grave lesão na genitália, e não disponibilizá-la para transexuais constitui flagrante violação ao direito à igualdade e à norma constitucional que proíbe a discriminação, já que impede o acesso igualitário ao serviço público por todos os indivíduos.

Conforme o relator, “[...] as cirurgias requeridas já existem e são prestadas como procedimento remunerado aos hospitais pelo SUS; a exclusão das transexuais deste regime está proibida constitucionalmente, em virtude dos direitos fundamentais de liberdade, igualdade e respeito à dignidade, que obrigam o Estado a não excluí-las. Para se acolher o provimento requerido, portanto, basta que o Estado se abstenha de atentar contra a realização do direito social já existente, pelo que a proteção judicial, aqui, dá-se no quadro típico da garantia dos direitos fundamentais clássicos”. (22)

Conforme destaca a resolução 1482/1997 do Conselho Federal de Medicina: “a transformação da genitália constitui a etapa mais importante no tratamento do transexualismo” e ser “o paciente transexual portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com relação do fenótipo e tendência à automutilação e ao auto-extermínio”. Assim, além do direito à saúde, os transexuais merecem ter respeitado o direito à vida, já que possuem tendência ao suicídio, caso não tenham acesso a tratamento adequado.

Ademais, [...] ao reclamar a realização de uma cirurgia de adequação de sexo não está o transexual a defender o direito de embelezar-se por simples vaidade, mas objetiva ele a proteção ao seu direito à saúde, não merecendo tal prática esbarrar em uma proibição. A saúde do indivíduo é muito mais importante que a manutenção de uma parte do corpo comprovadamente inoperante. O tratamento é, portanto, uma questão de saúde, que o Poder Público é obrigado a prestar, conforme claramente determinam os artigos 6º e 196 da Constituição Brasileira. Cabe recordar que na hipótese de transexualismo não se está falando de um ato de vontade do cidadão, mas de uma moléstia que nenhum cidadão escolhe ter. Assim, o transexualismo não decorre diretamente da invocação do direito de dispor de ser próprio corpo, como uma variante do direito à liberdade sexual. O transexualismo, no plano jurídico, decorre do direito ao livre desenvolvimento da personalidade”. (23)

Nesse sentido, quando o Estado se nega a oferecer tratamento médico aos transexuais, não só o direito à saúde é violado, o direito à igualdade e o direito à vida também o são. Além de constituir ofensa a norma constitucional que proíbe a discriminação por motivo de sexo. Tal discriminação compreende, não só, os tratamentos desfavoráveis fundados na distinção biológica entre homens e mulheres, como também os tratamentos desfavoráveis decorrentes de gênero, relativos ao papel social, à imagem e às percepções culturais que se referem à masculinidade e à feminilidade.

Continua...

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