sexta-feira, 2 de julho de 2010

Os desafios jurídicos na proteção dos transexuais - parte 5.


4. A mudança de nome e de sexo no registro civil

A questão da mudança de nome e do sexo no registro civil suscita muita divergência entre entendimentos, pois, como já dito, no Brasil ainda não há legislação específica regulamentando o tema.

A maioria dos juízes e desembargadores negam o pedido de retificação pelo fato de ao haver lei própria regulamentando a questão. (24) Segundo eles, o registro é imutável, só podendo ser retificado em casos específicos e expressamente previstos em lei. Alguns magistrados, todavia, deferem a mudança de sexo e nome em casos de intersexualismo. Em 06.08.1991 a 3ª Câmara Civil de Férisa “B” do Tribunal de Justiça, AC 148.078, RT 672/108, Rel. Dês. Flávio Pinheiro, proferiu decisão argumentando que: “A retificação de registro de nascimento para mudança de sexo e nos tem sido admitida apenas nos casos de intersexualismo. O despojamento cirúrgico do equipamento sexual e reprodutivo e o sexo psicologicamente diverso das conformações e características somáticas ostentadas, configurando transexualismo, não permitem a alteração jurídica”. (25)

Não obstante, parte da jurisprudência brasileira evoluiu, reconhecendo que a situação do transexual merece tratamento especial. Diversos juízes já concederam a retificação do registro civil. O relator Boris Kauffman, da 5ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, na Apelação Civil nº 165.157-4/5-00, julgada em 22/03/2001, deferiu a modificação de prenome masculino para feminino de pretensão manifestada por transexual que se submeteu a cirurgia de mudança de sexo. Foi admitida a mudança mesmo sem a existência a de erro no registro, pois é circunstância que expõe o requerente ao ridículo. O julgamento foi proferido com interpretação do art. 55, parágrafo único, c.c. o art. 109 da Lei 6.515/73.

Do mesmo modo decidiu o Desembargador Elliot Akel, da 1ª Câmara, do Tribunal de Justiça de São Paulo, na Apelação nº209.101-4/0-00, julgada em 09/04/2002. O magistrado admitiu a alteração do estado sexual no assento de nascimento na pretensão de transexual primário, submetido à cirurgia de mudança de sexo, que teve seu pedido de alteração de prenome deferido. Segundo o Desembargador, o requerente, após a intervenção cirúrgica, passou a ter as principais características morfológicas de uma mulher.

Em que pese a imutabilidade do registro, prevista no artigo 58 da lei nº 6.015/73, essa impossibilidade não pode expor o transexual ao ridículo em situações cotidianas vexatórias, já que o transexual possui aparência que não condiz com o nome e sexo constantes nos documentos.

Nesse sentido, é o entendimento da jurisprudência internacional. “A Corte italiana, em 24 de maio de 1975, reformando decisão do Tribunal de Apelação de Nápoles, declarou que a retificação judicial de atribuição do sexo não se restringe ao caso de hermafroditismo, devendo ser aplicada também no de transexualismo, pois o encontro da integridade psicofísica assegura o direito à saúde, que abrange a saúde psíquica”. (26)

Um caso de mudança de nome e de gênero que teve repercussão nacional foi o da transexual Roberta Close. Nascida com o nome de Luís Roberto Gambine Moreira, Roberta se submeteu a uma cirurgia de mudança de sexo, de homem para mulher, em 1989, na Inglaterra. Em sentença de primeira instância a Juíza da 8ª Vara da Família do Rio de Janeiro, Doutora Conceição Mousnier proferiu sentença concedendo a mudança de nome. Conforme trecho da sentença: “manter-se um ser amorfo, por um lado mulher, psíquica e anatomicamente reajustada, e por outro lado homem, juridicamente, em nada contribuiria para a preservação da ordem social e da moral, parecendo-nos muito pelo contrário um fator de instabilidade para todos aqueles que com ela contactassem, quer nas relações pessoais, sociais e profissionais, além de construiu solução amarga, destrutiva, incompatível com a vida” (27). Contudo, a juíza fez constar a ressalva ‘operada’. Infelizmente, em 1997, a alteração foi negada pelo Supremo Tribunal Federal. Após diversas batalhas judiciais, no ano de 2005, em uma nova ação, a Juíza Leise Rodrigues de Lima Espírito Santo autorizou a alteração no Registro Civil de seu nome e gênero.

Nesse mesmo sentido foi a sentença do magistrado Henrique Nelson Calandra, da 7ª Vara da Família e Sucessões da Capital, que concedeu ao transexual João Bosco, o direito de se chamar Joana. Porém, na certidão de nascimento, no local reservado ao sexo deveria fazer constar a inscrição transexual. Tal solução não é completamente funcional ao transexual, pois continua sendo discriminatória. O transexual continuará sofrendo com situações vexatórias. Conforme trecho da sentença: “[...] não sendo possível diante da omissão do legislador, lhe negar amparo, mantendo-o numa condição à margem do Direito, ficando a justiça petrificada e cega diante da sua situação, que, embora possa por alguns ser considerada afrontosa ao que a sociedade considera normal, não pode ser ignorada”. (28)

Cabe ressaltar que parte da jurisprudência tem admitido a mudança do nome no registro, porém, no lugar reservado ao sexo deve-se colocar o termo ‘transexual’. Todavia, a inserção do termo transexual é discriminatória. Portanto, não deve ser colocada. (29)

No mesmo sentido é o pensamento de Antônio Chaves: “[...] essas posições são intermediárias e não satisfazem o desejo da pessoa. Cabe ao transexual operado ser sincero. No caso de eventual engano, [...] afirma que a solução pode ser encontrada na anulação do casamento por erro essencial sobre a pessoa. Não se pode etiquetar os transexuais. Eles querem levar uma vida normal”. (30)

Teresa Rodrigues Vieira, por sua vez, acredita que “os registros públicos relatam fatos históricos da vida do indivíduo. Assim, [...] a adequação do prenome e do sexo deve constar para demonstrar que determinado indivíduo passa oficialmente, a partir daquele momento, e não do seu nascimento, a chamar-se fulano de tal, pertencente ao sexo X (não retroativo). Entendemos que os direitos dos transexuais e de terceiros estariam muito mais explicitamente assegurados se, no Registro Civil, constar a alteração ocorrida. Trata-se de uma ação modificadora do estado da pessoa, com a adequação do sexo, devendo, portanto, ser averbada (art. 29, §10, letra f, da Lei 6.015/73). Todavia, defendemos que não deverá ocorrer nenhuma referência à aludida alteração na Carteira de Identidade, Cadastro de Pessoa Física, Carteira de Trabalho, Cadastro Bancário, Título de Eleitor , Cartões de Crédito e etc.” (31)

Em suma, o tratamento jurídico no tocante ao gênero só reconhece o masculino e o feminino. A colocação do termo ‘transexual’ no lugar do sexo geraria um terceiro sexo, fato que se mostra um completo absurdo. Além disso, o transexual continuaria sofrendo discriminação e ridicularização. Quando o transexual requer a retificação do registro, é justamente a possibilidade de viver normalmente, ou seja, sem passar por situações vexatórias que ele anseia.

Maria Helena Diniz entende que “deve haver a adequação do prenome ao novo sexo do transexual operado sem qualquer referência discriminatória na carteira de identidade, de trabalho, no título de eleitor, no CPF etc. ou averbação sigilosa no registro de nascimento, porque isso impediria a sua plena integração social e afetiva e obstaria seu direito ao esquecimento do estado anterior, que lhe causou tanto sofrimento”. (32)

Outro importante passo dado foi o do juiz Guilherme Madeira Dezem que prolatou sentença favorável no sentido de autorizar a troca de nome, sem a realização da cirurgia de adequação sexual, e disse que, infelizmente, esse não é o entendimento da maioria dos juízes. Aduziu o magistrado que fundamentou sua decisão no princípio da dignidade da pessoa humana, implicando dizer que “a pessoa merece o tratamento amplo e máximo autorizado pelo sistema”. Outro fundamento utilizado na sentença foi o princípio da veracidade registrária, segundo o qual “o registro, a documentação representa, efetivamente, a situação vivida pela pessoa”. De forma que, uma pessoa com aparência feminina, não pode possuir um nome masculino, ou vice-versa, pois isso acarretaria um constrangimento desnecessário para a pessoa perante a sociedade. Segundo o magistrado, o autor é notoriamente conhecido como mulher, e não necessita da cirurgia para ser considerado transexual. “Disto decorre a seguinte situação: o autor não pretende fazer, por ora, a cirurgia de mudança e, assim, o representante ministerial entende que o princípio da veracidade registrária seria ferido, pois haveria incongruência entre o nome Renata e o sexo masculino aposto no documento. Mas essa incongruência já existe no plano concreto da vida: o autor, com sua aparência feminina, é constantemente objeto, no mínimo, de olhares curiosos quando instado a apresentar sua documentação”. (33)

Conforme Teresa Rodrigues Vieira, muitos transexuais já conseguiram a mudança do nome e sexo. Fato que mudou a vida deles para melhor, pois somente com essa conquista os transexuais conseguem viver a vida normalmente, como deve ser. (34)

Celso de Mello, igualmente, defende o direito do transexual de retificar a documentação, no tocante ao nome e ao gênero. Para ele, nada basta a realização da cirurgia de adequação se a pessoa continua vivendo o constrangimento de se apresentar como portadora do sexo oposto.

Os juristas atualmente têm levado em consideração o conceito do sexo psicológico, papel social. Outrossim, a lei 9.708/1998 alterou a redação do artigo 58 da lei 6.015/1973, que prevê a imutabilidade do nome, fato que também contribuiu para as questões de mudança de nome. A nova lei permite a substituição do nome por apelidos públicos notórios. Assim, os transexuais não devem possuir um nome o qual não se adequa à realidade, pois não exprime a verdade.

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