segunda-feira, 14 de abril de 2008

O mistério Trans

14/4/2008


Kim, transexual espanhola, acabou transformando a cidade de Granada em meca das transexuais

Por Marco Lacerda*


Assim como San Francisco, na Califórnia, é um ponto de referência para homossexuais, Granada, na Espanha transformou-se em meca para transexuais de todo o mundo, porque é um dos poucos lugares do mundo onde as cirurgias para mudança de sexo – que podem custar o equivalente a R$ 50 mil – são inteiramente gratuitas. O responsável pelo fenômeno é uma mulher de 63 anos, Kim Perez, que um dia chamou-se Joaquim e que há mais de uma década vem trabalhando para o sucesso da Associação Espanhola de Transexualidade, sediada em Granada e presidida por ela com o apoio de organizações humanitárias e partidos de esquerda.

O governo de José Luiz Zapatero submeteu ao Congresso um ousado projeto que inclui o "direito à identidade sexual". O projeto, que já tramita no Parlamento europeu, permite aos espanhóis mudar de sexo inclusive nos registros civis. A medida completa uma outra, conquistada há mais tempo, concedendo o direito de mudar de sexo a todas as pessoas que desde a juventude advertem que não pertencem ao sexo em que estão registradas em cartório. "Nosso próximo passo é estender a gratuidade da cirurgia a toda a Espanha", promete Kim com a segurança de quem já se tornou uma figura de projeção nacional.

Com raras exceções, todo transexual carrega consigo uma dor só comparável às depressões mais fortes, que começa na infância ou na adolescência, misturando vergonha, humilhação e culpa", diz Pérez, que já foi "ele" e hoje é "ela". Esse sentimento, explica, nasce da incapacidade do transexual de compreender a si mesmo, de não ser capaz de responder a uma pergunta que a maioria das pessoas tem na ponta da língua: sou homem ou sou mulher?

La Kim

Joaquim Pérez Fígares, de 63 anos – a atual Kim –, é o mais velho dos oito filhos de uma tradicional família de Granada. Os primeiros indícios de sua transexualidade apareceram aos dez anos. A mãe, dona de casa, olhava tudo com o espanto próprio de uma época em que sequer existia a palavra transexual. O pai, coronel da Aeronáutica, nunca reprimiu o filho, tampouco o compreendeu. "Todos achavam que eu era homossexual", lembra Kim. O isolamento neurótico em que Joaquim passou a viver levou os pais a interná-lo numa clínica psiquiátrica onde foi submetido a um tratamento chamado de "coma insulínico", baseado em doses potentes de insulina que o induziam a longos estados de coma, seguido de doses de glicose para voltar à realidade. Três meses e 30 doses de insulina depois, Joaquim abandonou o tratamento da mesma forma como entrara. Movido pela fé cristã, o jovem Joaquim buscava conforto na religião, "mas a Igreja aos poucos ia me deixando doente, porque não me absolvia nem apontava caminhos.



No final dos anos 60 ele concluiu o curso de História e começou a dar aulas na Universidade de Granada. Aos 30 anos, abandonou a Igreja e mudou-se para a Inglaterra. Trocou a cátedra na Espanha por um emprego como lavador de pratos em Londres. De volta ao seu país, três anos depois, com a ajuda de tratamentos psicológicos, Joaquim retomou a carreira de professor universitário. Aos 50, ao fazer um balanço de sua história pessoal, sentiu-se diante de uma página em branco. "Era como se eu vivesse numa sala de espera diante de uma porta que nunca se abria".

Foi em Madri, no começo dos anos 90, que a vida de Joaquim deu uma guinada. Numa boate gay ele conheceu uma garota, ou, melhor dito, um garoto transformado em garota graças a uma intervenção cirúrgica. "Era uma mulher linda, exuberante, vivendo sua transexualidade em toda a plenitude, sem os medos que me marcaram", recorda. Naquele dia, Joaquim se deu conta de que tinha desperdiçado sua vida, vítima de anos de repressão. Disse a si mesmo: "Não vivi até agora, mas estou vivo".

Não muito depois iniciou um tratamento hormonal como primeiro passo para a troca de sexo. Em 1995, aos 54 anos, depois de uma cirurgia de quatro horas, estava consumada a transição. Nascia Kim. Depois da mudança, Kim passou de uma situação quase desumana, de verdadeiro inferno, a outra, radicalmente diferente, cheia de esperança.

Como professor universitário, Joaquim terminara um semestre letivo de terno e gravata e voltou para o semestre seguinte de saia e blusa. "Os únicos que se assustaram foram os professores. Os alunos aceitaram-me como se nada tivesse acontecido", ressalta.

Kim admite, porém, que a cirurgia não a transformou em mulher. "Continuo sendo um transexual, só que agora mais serena, equilibrada, forte". Um mundo novo descortinou-se para ela. Novos amigos e amigas começaram a aparecer e surgiu na vida de Kim um sentido de missão, de servir a outros transexuais, de pavimentar o caminho para que a transição para a sexualidade à qual eles pertencem não seja tão traumática como foi a sua.

Apesar dos avanços, a realidade enfrentada pelos transexuais ainda é cruel. A maioria – calcula-se que são 200 mil em todo o mundo – vive da prostituição, mesmo sendo dotados de talentos que, não fosse a discriminação, os permitiriam escolher outra forma de sobrevivência. Muito disso, diz Kim, "se deve àqueles pesados anos de disciplina católica baseada nas teorias naturalistas de São Tomás de Aquino, segundo as quais extirpar um órgão sadio é considerado uma aberração".

Transexualismo não é perversão, obsessão ou transtorno mental. Tampouco é uma doença. Portanto, do ponto de vista científico, não há o que curar. A explicação é do cirurgião plástico italiano Marco Loiácono, de 30 anos, que tem curso de especialização em cirurgia de mudança de sexo na Universidade de Groningen, na Holanda. Mesmo não havendo o que curar, a transexualidade pode ser geradora de sofrimentos insuportáveis. "O pior deles é a pessoa ter um aspecto físico – masculino ou feminino – que lhe parece estranho, como se a natureza lhe tivesse pregado uma peça", diz Loiácono.

O caminho até uma operação de mudança de sexo não é fácil. Na Espanha existem apenas três especialistas no assunto. A psicóloga Lola Izquierdo faz parte desse reduzido grupo. "O objetivo é evitar que alguém que não seja transexual chegue a um ponto sem retorno", explica Lola. Daí a importância da terapia psicológica preparatória. Uma pessoa que queira mudar de sexo deve estar continuamente sob observação desde o momento em que começa o tratamento hormonal. Se alguma coisa vai mal nesta fase, ainda é possível voltar atrás. A última etapa, chamada de "teste da vida real", dura um ano. Neste período espera-se que a pessoa viva com desenvoltura no sexo que deseja. A operação só é feita em quem supera esta fase com êxito", diz. Uma das clientes de Lola, a transexual Mercedes Camacho, é um exemplo bem sucedido. Sua vida mudou depois de operar-se aos 19 anos. Hoje, aos 32 anos, sou casada e muito feliz", comemora Mercedes.

Atualmente, segundo Kim Pérez, além dos partidos de esquerda, os transexuais espanhóis contam com o apoio de organizações médicas e dos movimentos feminista e ecológico – uma força que representa 4% da população do país, com influência no resultado de qualquer eleição. Mesmo assim, ainda são rechaçados pela Igreja. "O Vaticano acaba de proibir nosso ingresso na vida religiosa. À primeira vista o veto pode parecer normal e até divertido. Já pensou eu, Kim, de monja carmelita? O que me espanta, porém, é a hipocrisia. Como podem condenar a sexualidade alheia homens que renunciaram à própria sexualidade"?, pergunta.

Segundo Kim, vozes isoladas começam a se fazer ouvir dentro da Igreja espanhola em defesa dos transexuais, como a do arcebispo de Sevilha, cardeal Carlos Vallejo, franciscano e psiquiatra. "Vou à missa diariamente e comungo acompanhada de minha mãe. Mas existe sempre a apreensão de que, um dia desses, um padre que não me conheça me negue a comunhão".

Há pouco, Kim ganhou um novo aliado, o psicanalista jesuíta Carlos Dominguez Morano. O que mais impressionou o sacerdote jesuíta foi o fato de Kim não ser apenas uma pessoa em busca da aceitação de sua condição sexual, mas de um ser humano comprometido com sua fé. Para Morano, o problema da Igreja, ao longo dos séculos, não é com hetero, homo ou transexualismo, mas com sexo. O que a hierarquia católica prega sobre o assunto é fruto de dedução filosófica, não de experiência pessoal. Jesus sequer menciona sexo em seus ensinamentos, a não ser para desmontar preconceitos".

Por causa de preconceitos ostensivos, Kim Pérez rompera com a Igreja, prometendo não mais voltar. Mas não tardou em perceber, como católica, que sua luta deveria ser travada dentro da Igreja. "Um transexual rompe com o esquema da lógica da maioria das pessoas, mas quem mais nos discrimina são os católicos à moda antiga, os fariseus de hoje". Por isso, o compromisso de Kim passou a incluir, também, "a luta por uma Igreja cujos atos sejam mais coerentes com os ensinamentos de Jesus. Hoje em dia entro em qualquer igreja, segundo as minhas necessidades. Se alguém quiser me expulsar, que chame a polícia", conclui.

Fonte: http://mixbrasil.uol.com.br/mp/upload/noticia/4_63_66374.shtml

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