segunda-feira, 19 de maio de 2008

Minha História de Vida II - "O coração tem razões que a própria razão desconhece" - Por Sophia


Há quase seis anos conheci uma pessoa que mudou o rumo da minha vida. Namoro com esse homem transexual e quero compartilhar essa história a fim de servir de apoio a você que tem em comum tantas barreiras para alcançar o objetivo de ser reconhecido como realmente é.

Ele chegou à igreja em que eu estava desde criança. Veio porque não entendendo sua condição de transexual, entre um conflito e outro, deixou-se angustiar e tentou o suicídio. A sua família, que agora por causa do alvoroço, estava por dentro de sua preferência por garotas, conseguiu ser mais fria e omissa do que nunca.

A tia com quem ele morava, por motivos óbvios, já que ele mantinha um caso com a prima, obrigou o sobrinho dela a despedi-lo. Seus pais vieram para ver a sua quase morte e logo depois voltaram para o lugar de origem, a fazenda. E assim ele ficou, sem emprego, sem apoio, e o pior de tudo ainda sem se descobrir.

Lembro-me bem do primeiro dia que o vi, foi logo após sua volta do hospital. Ele chorava incontrolavelmente de cabeça baixa, enquanto eu e os jovens da minha igreja olhávamos pra ele ouvindo juntos as palavras do Pastor.

E foi esse mesmo pastor o responsável por sua vinda à igreja para se ‘tratar’, para de uma vez por todas se assumir como mulher que gosta de homem. Sou prova de que meu amor tentou, estava sempre na igreja acompanhado de uma bíblia, um rosto envergonhado e muita vontade de se livrar de tanto peso. Quando ele conseguia se abrir, dizia que havia feito um acordo com Deus, pedindo que ele mudasse seus sentimentos ou o levasse de vez pra onde ele já queria estar.

Fiquei sabendo do motivo da tentativa de suicídio pela boca de uma criança, filho do pastor, que contava às pessoas o que conseguia ouvir dos particulares do pai: ‘Foi porque ela gosta de mulheres’, o que piorava e muito a sua imagem dentro da igreja. Eu não conseguia entender porque a vida dele tanto me interessava, não conseguia explicar porque amava tanto uma pessoa desconhecida desde aquele primeiro dia quando o vi chorar. Mas não nego que naquela minha alienação essa novidade me assustava muito.

Ele dividia um quarto com uma autoridade da igreja, cedido pelo pastor. E ali os dias não foram melhores. Proibiram certas roupas, certas atitudes, enfim, tentaram contra sua liberdade a fim de trazê-lo para a ‘santidade’. E deixavam faltar até comida por lá. A pessoa da igreja que morava com ele, escondia comida, e ele mesmo não comprava a sua por ter sido despedido do emprego. Esse clima difícil só alimentava nossa amizade, que era alvo de críticas por muitos. Mas era tão fácil amá-lo, não estava ao meu alcance deixar de estar com ele.

Ele se declarou um dia, mas até então eu não concebia a idéia. Meu amor não era uma coisa carnal, era primeiro uma ternura. Ele me afirmava que faria uma tal cirurgia para mudar o sexo, assim como a Roberta Close, eu achava que tudo aquilo era uma loucura sem tamanho, mas não quis contrariar.

De onde viriam os recursos? Será que existe mesmo isso?

Percebendo as atitudes dele, minha mãe com medo, pediu para que ele se afastasse, mas que não me contasse que ela tinha pedido isso. Mas ele me contou e as coisas lá em casa começaram também a se transformar em um inferno. Não adiantava dizer que a gente queria a amizade, todos estavam contra nós usando o nome de Deus.

O meu fim foi saber de um escândalo do Pastor que eu reconhecia como Deus na terra; só aí ‘caiu a ficha’ que aquele sistema era um teatro para manipulação. Daí pra frente eu encerrei uma vida de religiosidade e renasci pra outra vida, cedendo então as propostas que já não agüentava mais recusar. Eu adorava saber que existia alguém que me amava e completava daquela forma tão plena. A condição de FTM fez dele um homem que toda mulher gostaria de ter, um homem mais sensível, mais livre, mais comprometido e, antes de tudo, forte.

Começou então a correria para descobrir se realmente existia um tipo de tratamento. Eu ficava horas procurando sobre isso. Foi um dia muito feliz pra mim, e de grande alívio pra ele, quando descobri que aqui mesmo no Brasil isso tudo podia ser realizado. Sabe porque o alívio dele?! Acho que nem ele acreditava nas próprias palavras. A gente precisava movimentar alguma coisa, e ele foi viajar. A passeio? Não! A trabalho duro!

Ele comprou alguns materiais de artesanato, trabalho que ele sabia fazer, para dar cursos nas cidades. Ia na rodoviária, escolhia a cidade pelo nome e entrava no ônibus. Ô vida difícil era aquela. Muitos cursos furavam e só sobravam caixas e caixas pra ele carregar de um lado para outro sem ter nem o que comer. Ele não podia estudar, estava claro que daquele jeito não ia dar em nada esse tratamento. O pouco dinheiro que juntava, gastava para pagar alguns dias de hotel para não dormir na rua; e a experiência de dormir em rodoviária não foi muito boa. Refugiou-se então na fazenda dos pais, pelo menos fome não passaria por lá, mas teria que se submeter a inúmeros desagrados e a autoridade extrema do pai.

Reuniu forças e veio encarar a cidade novamente, arrumou um emprego de dia para jovens aprendizes que não lhe rendia nem um salário mínimo, mas completava o dinheiro olhando uma senhora de noite. Não eram raras as madrugadas que ele passava limpando-a, trocando as camas e fazendo remédios caseiros. E não é pequeno o patrimônio do pai dele aqui na cidade, quando ele contava ninguém acreditava.

Das buscas pela net surgiram grandes amizades virtuais com FTM´s que nos ajudaram indiretamente. E de todo o resto surgiu aprendizagem e resistência. Hoje iniciado o tratamento temos esperança de fazer um final digno para nossa história que vai muito além do que consegui resumir. Foram muitas as dificuldades, mas compensa muito ver a realização, pouco a pouco, dos sonhos que chegaram com muitas lágrimas. Sempre existe um lado positivo na dor, aliás, devemos a ela a cumplicidade do nosso relacionamento e devemos também o mais importante: nossa continua evolução.

Nenhum comentário:

Postar um comentário