quinta-feira, 20 de março de 2008

Como será estar do outro lado?

Clamamos tanto que as pessoas nos entendam, e aqui falo de transexuais somente, para sermos reconhecidos, e podermos funcionar normalmente sem vestígios de nosso passado, ao menos legal, em nossas vidas. Mas como é para as outras pessoas, inclusive dentro da "comunidade" GLBTT, entender o que se passa em nossas cabeças? Como entender o motivo de alguém querer romper com esse binômio masculino / feminino? Que nossa mente não lê nosso corpo, e nossa alma não reconhece este físico?

Coloco-me então na posição de alguém recebendo um cheque aonde identidade e físico não batem, percebo minha desconfiança e pergunto a pessoa, tão constrangido quanto eu, que não é possível que deve haver algum engano. Este me diz ser transexual, e eu ainda assim, agora um tanto irritado, digo não poder aceitar, ou aceito e passo a ostentar uma atitude seca e até grosseira para me ver livre do incomodo. Eu não sei o que é um transexual, para mim é a mesma coisa de travesti, então pela associação rápida e estereotipada, deve ser algum marginal, pervertido e ainda por cima tentando me extorquir, iludir com uma identidade e cheque roubados. Fecho-me em minha ignorância, visto meu medo e rejeito o diferente, até porque na dúvida preciso desse emprego e não posso cometer erros.

Trabalho num RH de uma empresa e chamo Fulana Da Silva para uma entrevista. Aparece-me uma figura masculina, sem peito e com "pinto". Estranho, mas como selecionador não posso cometer deslizes desse tipo, todos somos iguais. Faço a testagem, mas numa má vontade danada, pulo algumas partes. Imagina essa coisa aqui na minha frente querendo dar uma de macho... macho, eu sei o que ela precisa pra dançar pianinho. Ele me explica e até diz que é transexual e eu, formado com pós em recursos humanos acho até que ouvi algo na faculdade ou na televisão, mas não sei bem o que é, e nem quero saber, não é problema meu, sei o que preciso saber e que meu contratante não vai gostar de ter alguém assim na empresa, instável, que nasceu de um jeito e agora diz para mim que não se sente assim e que está mudando. Mudando o quê? Acabo o teste e prometo entrar em contato, mas não vou, prefiro alguém menos capaz, mas fisicamente mais "normal", que não assuste nem cause tanto impacto.

Estranho, talvez eu também tivesse minhas desconfianças se alguém assim chegasse a mim. Eu feliz e "bem comigo", funcional e enquadrado, e tivesse que passar por uma das situações acima; até porque o mundo está cruel, eu preciso de meu emprego, não pode haver enganos, e minha formação superior naquela faculdade, ralando tanto tempo não me permite admitir que existem coisas que não sei ou que difira da minha religião que me diz que homem é homem e mulher é mulher.

Verdade que pensando assim haveria explicação para tudo, motivo para tudo e quaisquer atitudes, mas o bom e velho respeito é algo que, independente das dúvidas que temos, deve ser mantido. Enquanto transexuais, somos também humanos e também temos nossos preconceitos, nossos medos, nossas ignorâncias, às vezes até com nós mesmos. Mas nada que conhecimento não cure, educação não resgate ou aprendizado que abra.

É claro, que em situações que envolvam constrangimento, vexame, ofensas verbais e / ou físicas é mais do que necessário que se tome outras atitudes, afinal ninguém é saco de pancada. Nada que um BO e um bom processo não resolva. Mesmo sem leis específicas de proteção a transexuais e outras minorais sexuais em todos os estados, o que consta na Constituição parece-me mais que suficiente.

O mundo parece cada vez mais distante, seco e duro, todos donos de si e senhores do nada, então porque não se permitir aprender e questionar, ainda que isso cause conturbações e confusões? O mundo não evoluiu até aqui por causa de pessoas com seus medos e ignorância, e na verdade ninguém evolui assim. Não existem grandes evoluções sem quebra de conceitos e idéias, e nem quebra de conceitos sem o pensar individual. O que pode parecer à primeira vista egoísmo é na verdade, uma proposta de unificar as pessoas, de lhes ensinar tolerância e respeito. O governo pode não proporcionar qualidade, mas que tal começar com a qualidade de nós mesmos?

Nenhum comentário:

Postar um comentário