quarta-feira, 26 de março de 2008

Um olhar histórico e cultural sobre transgressões de gênero II

Aspectos mitológicos

Na mitologia greco-romana, segundo GREEN (1998), encontra-se referência a Vênus Castina, a qual, para GREGERSEN (1983, p. 71) seria a “deusa que se preocupa e simpatiza com os anseios de almas femininas presas em corpos masculinos”. Uma das várias denominações e especificações da deusa do amor, mais conhecida entre os gregos por Afrodite.

Outras referências mitológicas são encontradas em indivíduos cuja mudança de sexo não se dá por desejo, mas, sim, por punição divina. GREEN (1998) cita o mito do adivinho Tirésias de Tebas, que, ao ascender ao monte Citerão, encontra duas cobras copulando. Ao separá-las e matar a fêmea, ele é punido pelos deuses, sendo transformado em mulher. Sete anos depois, ao se adaptar a essa condição e forma femininas, Tirésias sobe o mesmo monte. Ao se deparar com a mesma cena de duas cobras copulando, mata o macho e, com isso, consegue ser novamente transformado em homem pelos deuses. Por ter experimentado tanto o prazer sexual feminino quanto o masculino, Tirésias é escolhido como juiz em uma disputa entre Zeus e Hera com relação a esse tema. Ao afirmar no veredito que o prazer da mulher era superior ao do homem, na proporção de nove a um, a deusa o cega, pois apesar de aparentemente dar a vitória às mulheres, sua conclusão privilegiava os homens, na medida em que o prazer feminino dependeria do desempenho masculino. Zeus, condoído, dá-lhe o dom da adivinhação como forma de “ver o futuro”. Tal dom desempenhará papel especial em outros mitos como, por exemplo, o de Édipo.


Já no Reino da Frígia (atualmente região da Turquia), os sacerdotes do deus Átis - filho e amante de Cibele, a mãe Terra - eram obrigados a se castrar em deferência a Átis, que se emasculou sob um pinheiro por conta desse amor proibido, mas realizado. Esses sacerdotes não só se castravam, mas também podiam retirar toda a genitália externa masculina. Viviam e se vestiam como mulheres comuns. O culto foi levado a Roma após as Guerras Púnicas travadas contra Cartago nos séculos III e II a.C., onde, apesar de proibido, era valorizado. Para homenagear esse amor entre mãe e filho, os iniciados no culto de Cibele dançavam em frenesi no Dia do Sangue. Os sacerdotes do culto atravessavam as ruas de Roma, extirpavam seus testículos com uma faca de pedra consagrada e depois jogavam as partes ensangüentadas na casa de um romano fora de suspeita. Os moradores afortunados dessa casa deveriam dar roupas de mulher ao sacerdote, que as vestiria até o final de sua vida. Conhecidos como galli, esses eunucos vestidos de mulher tomavam conta do templo de Cibele, que permaneceu até o século IV d.C. no sítio romano hoje ocupado pela basílica de São Pedro.

Os gregos possuíam ainda um deus chamado Hermafrodita, que era o patrono da união sexual. Filho de Hermes e Afrodite, possuía mamas e pênis. Conforme estátuas e representações no Museu do Louvre e outros museus, ele lembra muito os atuais travestis ou transexuais, tanto em forma física como em postura: masculina e feminina ao mesmo tempo.

Outra referência mitológica remete a uma tribo de Cítios - povo da Antiguidade - os Enarees, que foram punidos por Afrodite por terem saqueado seu templo mais antigo, em Ascelon. Foram transformados em mulheres assim como toda a sua descendência. Hipócrates, todavia, via a feminilização dos Enarees como resultado de intensas e constantes cavalgadas que afetariam sua masculinidade por alguma forma de lesão física.

BRANDÃO (1997) relata que o travestismo e a androgenia estão intimamente relacionados ao casamento do herói grego. São vários os heróis que mudam de sexo: Ceneu, Ífis, Leucipo eram mulheres que foram transformadas em homens na época do casamento; Himeneu, Cécrops, Átamas, por sua vez, eram homens e se transformaram em mulheres também na época do casamento. O autor sugere que o casamento do herói seria uma forma de restituição de um equilíbrio perdido; retoma o mito andrógino narrado por Platão, por meio de Aristófanes, no livro “O Banquete”, no qual todo ser humano era composto de duas partes, ou homem ou mulher, que teriam sido separadas por decisão divina. Dessa forma, desde então todos buscam a metade perdida (homem ou mulher), a “alma gêmea”.

Não apenas na mitologia greco-romana a mudança de gênero encontra-se presente. No livro hindu Mahabharata, é descrita a história de um rei que se transformou em mulher após se banhar em um rio mágico. Teve centenas de filhos e quando foi-lhe oferecida a oportunidade de ser novamente transformado em homem, recusou, pois dizia a quem quisesse ouvir que o prazer da mulher é muito maior do que o do homem. Ao contrário do mito grego de Tirésias, sua recusa foi aceita e ele viveu como mulher.

Na Europa Ocidental, em plena Idade Média, bruxas e demônios dominavam o cenário religioso e cotidiano. Em 1486, dois monges dominicanos, Heinrich Kramer e Jacobus Sprenger, publicam o Malleus Maleficarum, livro depois adotado pela Inquisição no qual relatam-se casos e tratamentos de bruxarias e possessões demoníacas. Interessante nessa obra, um homem nunca poderia ser transformado maleficamente em mulher, mas uma mulher poderia, sim, ser transformada em homem. Isso aconteceria pelo fato da natureza, na visão corrente à época, evoluir da mulher para o homem, sendo a mulher um homem pouco desenvolvido.

Continua...


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