terça-feira, 25 de março de 2008

Um olhar histórico e cultural sobre transgressões de gênero I

Aspectos históricos

Não existem referências disponíveis a respeito de homens vivendo como mulheres ou mulheres vivendo como homens antes do Império Romano.

Filo, filósofo judeu helenizado do século I. d.C. e morador em Alexandria, segundo Hyde (1994) e

GREEN (1998), descreve homens que se travestem e vivem como mulheres, chegando até a se emascular e retirar o pênis. Seriam os chamados eunucos, termo que deriva da expressão grega para guardião ou zelador do leito. Aqueles que guardavam, sem riscos, os leitos das mulheres de seus senhores.

GREEN (1998) cita as descrições e poemas feitos pelos romanos Manilus e Juvenal acerca desses indivíduos que viviam e se comportavam como mulheres e tinham vergonha e ódio de serem vistos como homens. Esses eunucos, em Roma, tinham os testículos extirpados, mas muitas vezes mantinham seus pênis, o que lhes possibilitava ereções. Alguns, todavia, tinham os testículos e pênis removidos.

Vários imperadores romanos são descritos por se travestirem (transexuais, travestis e transgêneros) ou apresentarem características afeminadas. Contudo, dois casos merecem destaque. O primeiro diz respeito a Nero que após chutar sua esposa grávida, Poppaea, até a morte, arrependeu-se e, tomado de remorsos, buscou alguém parecido com ela. Encontrou em um escarvo, Sporus, essa semelhança. Nero então ordenou a seus cirurgiões que o transformassem em mulher. Após a cirurgia os dois se casaram formalmente – inclusive com direito a véu de noiva e enxoval – e Sporus viveu como mulher a partir de então.

Já o imperador romano Heliogábalo casou-se formalmente com um poderoso escravo, adotou o papel de esposa e oferecia metade de seu império ao médico que o equipasse com uma genitália feminina

No século IX, lenda ou não, teria existido o Papa João VIII nomeado em 855 sucessor do Papa Leão IV. Na verdade, seria uma mulher travestida de homem que teria engravidado e morrido ao dar à luz um bebê. Segundo NEW e KITZINGER (1993), a Papisa Joana teria nascido mulher com o possível nome de Gilberta, e adotou o nome masculino de “John Anglicus” e foi papa por 2 anos, 7 meses e 4 dias. As autoras especulam que o Papa João VIII poderia ter realmente sido uma mulher com deficiência de 21 – hidroxilase, ou seja, uma pseudohermafrodita feminina. De qualquer maneira, a história alcançou nossos dias e transformou-se em filme de Michael Anderson chamado “Pope Joan”, com Liv Ullmann no papel principal.

Há referências até no meio médico de que nessa época da História existiam pessoas de um gênero que se passavam e viviam como se pertencendo ao gênero que não o de seu nascimento.

A maior autoridade em ginecologia medieval e do renascimento teria sido Trotula, mulher formada na Escola de Medicina de Salerno que teria escrito por volta de 1150 d.C. os mais populares tratados de cosmtologia e saúde de mulheres. Na realidade, Trotula teria sido um homem que se travestia de mulher para tratar de mulheres. Essa seria sua única opção, pois era então proibido um homem cuidar de uma mulher no papel de médico.

Já na Renascença, o Rei Henrique III de França, “Sa Majeste” – que significa Sua Majestade, mas no feminino – queria ser considerado mulher, tendo se apresentado aos deputados travestido, usando um longo colar de pérolas e um vestido curto.

Durante o século XVII, na França, o abade de Choisy, também conhecido como François Timoleon, após ter sido criado como menina por sua mãe, deixou um vívido relato de seu desejo de ser e de se vestir como mulher.

Um dos mais famosos personagens de “cross-gender” é o Chevalier d' Eon, que deu origem ao epônimo “eonismo” para significar o fenômeno do travestismo em linhas gerais. Ele era o rival de Madame de Pompadour como amante de Luis XV. Quando o rei descobriu seu erro de avaliação, nomeou-o embaixador. Quando Luis XV faleceu, ele viveu permanentemente como mulher. Passou seus últimos anos na Inglaterra e viveu 49 anos como homem e 34 como mulher.

Em Versalhes, em 1858, Mlle. Jenny Savalette de Lange revelou, ao morrer, se tratar de um homem. Passou toda a vida como mulher, tendo se relacionado com seis homens; tinha certidão de nascimento falsa e recebia do rei uma pensão e moradia em Versalhes.

Não apenas na França esse fenômeno se manifestava. Nos Estado Unidos da América do Norte, é famoso Lorde Cornbury, primeiro governador colonial de Nova York, que chegou ao Novo Mundo vestido como mulher e despachava assim em seu escritório. Cem anos depois, durante a Guerra de Secessão, Mary Walker foi a primeira mulher a ser comissionada como cirurgiã do exército e a ser autorizada pelo Congresso a se vestir com roupas de homens.



Continua...


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